Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

sábado, 26 de julho de 2014

A sabedoria de Mestre Ivan

Mestre Ivan foi um sábio-capoeira que conheci no Recôncavo Baiano, o lugar onde o Brasil nasceu de fato, com cana de açúcar, muita chibata mas também festa, vida e alegria para responder à tristeza. Certo dia, sem mais nem menos, Mestre Ivan me soltou esta pérola, inseparável do seu sotaque baiano malemolente e calmo:

- Felicidade não é na hora, felicidade vem é depois...

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Rebeldia Futebol Clube

Essa cambada de primos, modéstia à parte, sempre foi rebelde.

Reza a lenda que meu priminho mais novo não queria abandonar aquele lugar quentinho onde ele flutuava tranquilo e nem precisava sair de casa para ser alimentado. O parto dele demorou horas e emperrou por causa do tamanho da cabeça. O jeito foi meter o fórceps na cabeça do moleque. Claro que depois ele não iria bater bem da cachola como vocês sabem.

O bebezinho também não era fácil, não gostava de dormir no berço, vê se pode. Só parava de chorar se era balançado no colo. Mas não dormia. Só pegava no sono mesmo depois de papai levá-lo para um passeio no jipe. Decerto queria tomar um ar.

Pequeno, ainda engatinhando, cansou daquele negócio de papinha dada na boquinha, bilu, bilu. Pra mostrar quem mandava ali, numa hora de descuido parental, subiu na mesa, empunhou garfo e faca em atitude de desafio. Não procede o boato de que teria dito "Eu quero mocotó!"

Lá pelos sete anos, se recusou a fazer a primeira comunhão. Quando a mãe disse que o padre era legal e que tinha um futebol depois, o sujeitinho abusado respondeu que se essa tal de primeira comunhão fosse bacana não precisava ter jogo de futebol depois. Quando o padre veio à sua casa para que ele não morresse pagão e ardesse no Inferno, disse para a mãe: por que eu tenho esse privilégio? Não confio nesse padre. Como sabem, foi batizado mas é  pagão por escolha e acredita nos deuses gregos...

Ainda pequeno, fez um abaixo-assinado e uma passeata no prédio, em plena ditadura militar, para pedir a liberação do futebol... Pichou as paredes do edifício, juntamente com um amigo, que depois lhe dedurou, contra o porteiro que lhes tomava a bola. Tiveram que esfregar tudo.

Adolescência? É até covardia. Batia boca com Geisel na televisão, fazia discursos contra a Coca-Cola, a água negra do imperialismo, lia todos os jornais de esquerda alternativos (com o perdão da redundância) e participava de tudo quanto é passeata, cineclube, debate, onde tivesse algo contra a ditadura lá estava meu primo.

Hoje não, meus primos são tranquilos, conformados, passivos até. Infelizmente, de vez em quando mentem um pouco rsrs.


terça-feira, 22 de julho de 2014

Perdeu Playboy

Sim, mas não foi só a Playboy, perdeu a Status, a Ele e Ela, e até uma revista chamada Homem embora só tivesse mulher pelada … Calma, já vou explicar direitinho. Esse primo tinha uns 16 anos e estava morando na casa da sua querida avó Isaura.  Ela era portuguesa, vascaína e a pessoa mais doce que ele já conheceu. Mas a rapadura também é doce, sabe como é?

Pois bem. Nessa época, meu primo era quase um santo. Ele acordava cedo, tomava café com a vovó querida e ia para a escola. Voltava, almoçava com a vovó amada e em seguida enfiava a cara no estudo. Começava lá pela uma da tarde e ia até a hora do jantar, por volta das sete horas. Todo santo dia, menos dia santo, ou seja, no fim de semana folgava. Aí lia seus romances, ia ver um filme com os amigos ou ao Maraca ver o Flamengo. Estudava tanto que mesmo na véspera da prova continuava somente com o ritmo normal. E nada de estudar à noite ou varar a madrugada. Não era necessário. O cara era um CDF profissional.

Tímido que só, nem pensava em namorar. Nas festas, ficava apenas olhando ou então dançava um pouco e logo se sentia desajeitado, achava que tava todo mundo olhando pra ele… Resultado? Era o melhor amigo do jornaleiro: tornou-se o rei das publicações "adultas" mencionadas acima. Por isso era quase santo.

Vovó, sempre zelosa, cuidava bem do netinho. Um dia, quando ele chegou da escola e os dois almoçavam, ela deu a notícia aterradora:

- Meu neto, fiz uma limpeza no seu quarto. Joguei umas coisas fora.

Tão simplesmente. Difícil foi terminar o almoço. Para não dar na pinta, ele comeu até sobremesa.

Depois, foi checar a tragédia. Nem sinal. Alguns itens eram de colecionador, a primeira Playboy no Brasil, por exemplo. Havia também as "preferidas", aquelas com as quais ele quase conversava, digamos assim. Morenas voluptuosas, louras falsas e verdadeiras, japonesas eventuais, mulatas... Todo um harém de Onam desaparecido em um instante. O Vento levou… ou melhor, vovó jogou fora.

Não havia jeito, vovó não iria dar mole daqui pra frente.

E agora?

Vai aprender a dançar, primo!

domingo, 20 de julho de 2014

Meu primo vira grego...

A especialização é uma burrificação voluntária. O cara passa a vida toda aprendendo cada vez mais sobre cada vez menos. Vira um sabe tudo acerca de quase nada. E começa a olhar para os seres humanos "normais" como se fosse um PhDeus com pena dos reles mortais comedores de pão. Tive um primo que caminhava a passos largos para ser um especialista da Grécia antiga. Já tinha livro sobre o assunto, ia nos congressos, artigo publicado em francês, os ingredientes da receita já estavam todos lá.

Mas aí ele deu de frente com a vida. Saiu do gabinete um pouco. Olhou em torno. Na televisão, a cena da barbárie cotidiana, que só chocou a cidade porque aconteceu na linda e loura Zona Sul. O o bandido que ousara tentar assaltar o shopping é encurralado por policiais e executado atrás de uma kombi. O mais chocante não foi aquilo e sim os comentários: "É isso mesmo, tem que matar esses desgraçados". Quem havia dito isso era uma doce menina de doze anos.

Meu primo parou e pensou. O que um ateniense de verdade faria se a sua pólis, se a sua comunidade de cidadãos vivesse uma situação daquelas? Era fácil responder. No século VI a.C. Atenas ficou dividida em duas partes, em uma sangrenta guerra civil, que eles chamavam de stasis. Matar, cortar cabeça, tocar fogo, valia tudo. Ou melhor, quase tudo. Ficar em cima do muro não valia. Quem não tomasse partido perdia os seus direitos de cidadania. Portanto, a decisão era fácil. Meu primo suspendeu a tese sobre as mulheres de Atenas e Esparta. Primeiro para estudar a Penitenciária Lemos Brito, uma unidade em que só entrava quem tivesse sido condenado a pelo menos dez anos de tranca. Depois foi proibido de frequentar o estabelecimento penal após uma semana cultural pensada por seu amigo Marcelo Freixo. Acabou pesquisando aquela que era considerada uma das favelas mais perigosas do Rio, para onde foi levado por seu amigo poeta Deley de Acari.

Ali, reencontrou os gregos. Não mais de túnica, mas de bermuda e chinelos ou até mesmo descalços. Gregos de cabelos crespos, narizes achatados e lábios grossos. Gregos tostados pelo sol. Reencontrou as ruas labirínticas, sujas e barulhentas como as ruas de Atenas à época de Sócrates. Reencontrou as cores vivas que recobriam os templos. Como na Grécia antiga, caminhou em meio a um mundo povoado por deuses. Reencontrou um mundo viril, centrado na ideia de honra. Ironicamente, ao contrário do que lhe diziam os acadêmicos, ao contrário da acusação que lhe faziam de ter abandonado a Grécia antiga, agora estava mais perto dela do que nunca.

Ali, nas palavras sábias de Dona Marlene, aprendeu a ser gente. Aprendeu a rir, brincar e gargalhar como um ateniense fazia. Muitas vezes com alusões sacanas a perus gigantescos, como nas comédias de Aristófanes e nos becos de Acari. Ali aprendeu que aquela famosa frase latina que vivia repetindo para os alunos era mesmo verdadeira e que nada do que é humano lhe era ou deveria ser estranho. Ali ele deixou de ser um burro voluntário, apenas mais um especialista em Grécia antiga.

Porque estudar a Grécia antiga é bacana, mas é muito mais divertido virar grego...

sábado, 19 de julho de 2014

Parecia, mas não era

Aquele primo começou a dar aula na universidade tão jovem, mas tão jovem, que ele mal se distinguia dos seus alunos. Naquele tempo havia o costume das aulas trote, pois o pessoal do curso de História se recusava a dar trotes humilhantes e ou físicos. Um dos alunos mais antigos, de preferência alguém com uma atitude já doutoral e uma voz possante, sem falar no senso de humor afiado, entrava em sala como se fosse um deus do Olimpo e começava a meter medo na calourada. Falava de quão difícil seria aquele curso e depois apresentava uma série de trabalhos que seriam desenvolvidos durante o semestre e uma bibliografia interminável onde havia títulos de mentirinha como A capital, de Carlos Marques. Depois de uma meia hora de terror, o cara se revelava, tudo acabava em gargalhada e pronto.

Acontece que o meu primo tinha a aparência, no máximo, de um aluno de 2o. ano. E ele lecionava História Antiga, uma disciplina do primeiro período. Às vezes quem dava a primeira aula aos calouros era ele, que não admitia que sua sagrada aulinha fosse usada como aula trote. Para piorar, ele também passava uma montanha de trabalhos, só que desta vez era a sério. Já viram, né?

Certa vez ele foi dar a primeira aula do semestre para uma turma de calouros. Começou todo sério, como aliás os veteranos faziam na aula trote e depois apresentou a lista interminável de deveres. Notou que desde que havia entrado em sala uma aluna havia olhado para ele com uma pergunta nos olhos: será que esse cara é professor mesmo? Não será uma aula trote? Como ele estava acostumado com aquilo, prosseguiu sem se preocupar. Mas à medida em que ia explicando como seria o curso, bem puxado, cheio de avaliações, resenhas, cronologias e outras coisas, a aluna da primeira fila ia abrindo um sorriso que parecia dizer: Você não me engana não. Meu primo começou a ficar um pouco incomodado com aquilo e para sanar quaisquer dúvidas, resolveu esclarecer:

- Olha só, eu sou bem jovem, coisa e tal, mas isso aqui é uma aula de verdade, não é uma aula trote

Foi o que bastou. A gente costuma ouvir o que quer e a tal aluna, que já suspeitava fortemente que aquilo só podia ser uma brincadeira, levantou-se quase às gargalhadas dizendo:

- Eu sabia! Eu sabia! Claro que é uma aula trote!

Parecia, mas não era. Para explicar é que foi uma África.

Para evitar cenas assim, meu primo deixou crescer uma barba malfeita, caprichou nos óculos e na pose professoral. Os alunos dos semestres seguintes devem ter pensado:

- Poxa, o disfarce desse aí tá bom pra caramba!

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Cyber-idiotices

Todos sabem que esta máquina maravilhosa e terrível que é o computador opera com linguagem binária, do tipo 0 ou 1. A partir daí ele faz tudo, dá conta de cor, som, texto, movimento e cada vez mais inimagináveis montanhas de dados.

O Facebook, sem dúvida, é aquilo que Marcel Mauss chamaria de um fato social total: pois tem dimensões culturais, políticas, comerciais e outras, todas evidentemente entrelaçadas. Em um país com quase inexistente tradição democrática, com uma sociedade civil muito fraca e instituições que perdem legitimidade a passos acelerados, o "Face" acabou virando uma arena. Mas uma arena mesmo, daquelas de UFC, ou até pior, porque até no UFC existem regras e no FB vale dedo no olho, chute nos bagos e até mordida em tudo quanto é lugar. E não estou me referindo a grupos sadomasoquistas fechados e sim ao "debate político".

Experimente fazer uma postagem claramente política. Foi o que fiz publicando um vídeo em que um capitão da PM tenta explicar o inexplicável: o cerco de todas as saídas da Praça Saens Peña e o impedimento do direito básico de ir e vir. Pois bem, vejam só alguns dos comentários que tive que "ouvir":

"Nêgo é folgado, né? (…) Se todos os policiais fossem assim seria uma beleza. O policial foi corretíssimo."

(em seguida, a mesma pessoa): "Mas o policial foi frouxo. Levantando a voz, assim devia botar o cara no lugar"

"o policial indica a rua que ele tem que pegar, e até o rapaz que está filmando dá a entender que ele quer ir pela rua dele e não fazer o desvio" [TODAS AS RUAS ESTAVAM BLOQUEADAS E O POLICIAL SABIA DISSO, M.A.] e acrescenta "é a mesma coisa quando a prefeitura fecha a rua no fim de semana"

"Ele não disse que é lei que te impede de passar ali! [NÃO, O VÍDEO É SOBRE ISSO, NÃO HAVIA NENHUMA LEI, OU AO MENOS, SE HAVIA O POLICIAL NÃO SABIA QUAL ERA, M.A.]
e continua: "e o que tem haver [sic] a polícia estar acima da lei?"

"Qualquer pessoa sensata há de convir que seriam necessárias aquelas barreiras"

"MIMIMIMIMI puta que pariu, só a voz do cara já irrita! O bloqueio é legal sim!"

"Você que postou isso é um MALA SEM [grifo do autor] alça, o policial está coberto de razão, só você não se toca, seu MALA"

"este babaca [o autor do vídeo, no caso eu rs] não foi porque queria mesmo era arrumar problemas, se fosse comigo ainda tinha dado uma borrachada e um tiro de borracha nele."

e por aí vai…

Como tenho alguma formação em antropologia, tento achar tudo divertido, tento me esforçar para compreender o "outro". Mas tenho também que avaliar que hoje vivemos uma polarização nefasta à nossa cultura política. Não existem só PT x PSDB. Não há que ser contra ou a favor da polícia. Não somos computadores, não somos obrigados a pensar binariamente. Falta gingado dialético e isso dos dois lados. Logo depois de filmar e postar, tentei explicar ao capitão que aquela não era uma questão pessoal e sim política. Eu não levantei a voz, eu não o agredi verbalmente e diga-se de passagem ele também agiu civilizadamente, talvez para desespero dos seus comandados.

Eu já dei aula para oficiais da Polícia Militar na UFF e posso atestar que não vieram de outro planeta. A maioria deles entrou na polícia militar por necessidade financeira inclusive. Sempre os tratei com respeito em sala, embora atacando (com argumentos históricos) a tradição da instituição que os formou e à qual eles estão ligados. Tenho presentes dados por minha turma de pms e me orgulho de tê-los ganho.

Cinco minutos depois eu estava conversando com uma militante que alegava que os policiais já haviam deixado de ser seres humanos. Também não concordo com isso. Como é que alguém acredita ser possível mudar o mundo se não acredita ser possível mudar as pessoas?

Sei que agora vou apanhar da esquerda também, mas isso não importa. Eu acho que o Facebook deve sim, ser utilizado de forma consciente e para divulgar ideias. Mas acho que não é o lugar apropriado para debatê-las. Aqui grassam as cyber-idiotices. Notem que não chamei ninguém de idiota, me refiro apenas a certos pensamentos, a certas forma de ver o mundo e de se dirigir a outros seres humanos comedores de pão.

Não há conversa, não há diálogo, quando não há um mínimo de respeito de parte a parte. Com o perdão de ter que afirmar algo tão básico, tão óbvio.

Nessa hora São Guimarães Rosa me socorre:

"Quando a gente odeia uma pessoa, dedica a vida toda a ela"


P.S: Idiota, idiotice tudo vem de um termo grego que significa "o mesmo". Idiotice é ficar no mesmo sempre, ser incapaz de mudar, de pensar diferente, de adotar outra opinião. É uma forma de morte em vida.

domingo, 13 de julho de 2014

Meu dia de Black Bloc

É uma brincadeira. Nunca joguei uma pedra em alguém ou quebrei uma vidraça. A última vez que briguei na mão com alguém eu tinha 14 anos e apanhei ao defender um amigo que estava sendo atacado por namorar uma moça do Leme, ele que morava em Botafogo. Sempre achei e continuo achando a "tática black bloc" um grande equívoco, responsável pelo esvaziamento das manifestações, colocando a opinião pública contra os protestos e facilitando de forma suicida a repressão policial.

Mas os deuses nos colocaram no mesmo barco por uma tarde. Quando soube do arrastão policial da noite do dia 12 de julho, com a prisão arbitrária de 19 ativistas à véspera da final da Copa, fiquei absolutamente indignado. Acordei no domingo e quando vi a postagem de uma amiga convocando para um protesto na Praça S.Peña fui para lá, onde encontrei minha amiga.

Lá pelo meio-dia, a praça estava uma festa. Jovens pintando faixas, outros exibindo cartazes, questionando a ditadura das UPPs nas favelas ou a violência sofrida pelo povo palestino. Estava mais para carnaval do que para guerra, embora eu notasse a apreensão em vários rostos. Quando quisemos ir casa dela, descobrimos que a praça havia sido totalmente cercada por policiais, com todas as saídas bloqueadas por pms. No caminho, encontro dois torcedores argentinos, vestidos com sua bandeira e completamente perdidos sem saber o que estava acontecendo. Peço que venham comigo.

Em um dos bloqueios, sou encaminhado ao comandante, um tenente-coronel digitando em seu celular. Ele nem mesmo levanta os olhos para mim quando digo boa tarde. Mas quando pergunto a ele qual era a lei que impedia um cidadão brasileiro de caminhar livremente pelas ruas ele me dá "permissão" para passar. Eu, minha amiga e os dois argentinos, que ficam muito agradecidos. Vamos para a casa dela e almoçamos.

Decido ver a final da Copa, confortavelmente instalado no sofá. Mas recebemos o telefonema de duas amigas que haviam sido barradas na esquina, bem onde havia uma padaria. Fomos até lá, dispostos a usar a mesma argumentação para liberá-las. Quando chegamos elas estavam sendo obrigadas a mostrar as faixas que carregavam, como se os policiais tivessem direito de proibir esta forma de expressão. O que veio depois foi pior.

Tentei conversar com o oficial, um capitão de nome Canito. A única coisa que ele soube me dizer é que estava cumprindo ordens. Resolvi filmá-lo para registrar o absurdo da situação. Creio que fica patente para todos que viram o despreparo completo de uma pessoa que estava comandando trinta homens armados até os dentes. Enquanto eu dava um telefonema, saindo de perto por causa do barulho, um sargento se aproximou da minha amiga e procurou intimidá-la perguntando se ela tinha filhos. Depois passou o resto do tempo olhando para nós com cara feia e com a mão direita no coldre.

Enquanto isso, a televisão da padaria reunia uma mini-multidão heterogênea. Havia uma mulher animadíssima torcendo pela Alemanha aos gritos, apaixonada pelo técnico do esquadrão teutônico. Uma argentina, em bom castelhano, clamou pela solidariedade latino-americana na forma de um gol. Alguns policiais, já mais relaxados, comiam seu biscoitinho. Outros haviam saído das suas posições e avançado, mas não era um ataque, era só pra ver o jogo melhor. Nessas horas é que eu entendo o Aldir Blanc...

A Alemanha fez seu gol. A mulher delirava. A solidariedade latino-americana sofria um duro golpe. Assim que termina o jogo o bloqueio é dissipado. Esta vetusta e insigne instituição, nascida há 205 anos para prender escravos fugidos, finalmente nos deixava voltar para casa.

Até que meu dia de black bloc foi divertido, se não fosse essa indignação que não passa por nada. Ai que vontade de atirar uma pedra...

domingo, 6 de julho de 2014

Quem quebrou Neymar ?

Foi o Zuniga? Foi. Mas teve muita ajuda. De quem? De uma triangulação perversa:

1. Para começar, o esporte espetáculo, show televisivo para o qual uma entrada violenta, mostrada em câmera lenta, é tão "bonita" e plástica quanto um drible (e há cada vez menos dribles a mostrar).

2. Talvez seja isto que explique a clara orientação da FIFA no sentido de que os juízes deixem o jogo "correr solto", com os cartões guardados no bolso o máximo possível. O esporte espetáculo, bilionário, movimenta hoje sete vezes mais do que Holywood e duas vezes a indústria automobilística. Os interesses em jogo, travestidos de patriotada, são muitos. Os jogadores entram em campo dopados psicologica e economicamente. Daí para meter o joelho na coluna de um adversário é um pequeno passo.

3. O Felipão, como escrevemos aqui há uma semana, criou uma tática que isolava o Neymar, sem ninguém para tabelar com ele. Contra o Chile, contra o México e ontem contra a Colômbia, Neymar, sozinho, tinha que conduzir a bola com um verdadeiro "corredor polonês" lhe esperando. Mais cedo ou mais tarde iriam quebrá-lo. Comparemos com Messi e vemos claramente a diferença. Há sempre um ou dois jogadores se colocando para receber a bola. Messi só arrisca o lance individual no final do jogo, com os zagueiros cansados e já pensando que ele vai passar a bola. No belo gol de Di Maria foi assim: Messi arrancou, três adversários vieram para cima dele, furiosos e ele imediatamente tocou para Di Maria.

Neymar nunca teve Di Maria para passar com Oscar marcando o lateral e Fred totalmente fora do jogo. Só quem tabelou com ele, a Copa inteira, foram as travas das chuteiras adversárias. O endeusamento de um garoto de 22 anos como super-homem, por parte da imprensa, também ajudou neste linchamento. O irônico é que a FIFA e o Felipão vão explorar o episódio ao máximo, isentando-se de qualquer culpa. Enquanto isso, Zuniga vai carregar nas costas o peso de um processo perverso de transformação do esporte mais amado do mundo em uma mercadoria mundial.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O feitiço de Creta

Era um dia de sol maravilhoso. O Palácio de Cnossos ficava a alguns quilômetros do centro da cidade. Meu primo, emocionado, percorreu as salas com afrescos "restaurados" pelo arqueólogo Arthur Evans e subiu ao terraço. De lá se via a bela vegetação da ilha de Creta. Ele arrumou um lugar para sentar e ficou ali feito jacaré, tomando um solzinho e feliz por estar realizando o sonho de conhecer aquele lugar lendário. Estava pensando no Minotauro e no labirinto quando ela surgiu. Era lindíssima. Claramente olhou para onde meu primo estava. Só ela e ele. No Palácio de Cnossos. Meu primo estava tão, mas tão feliz, que não quis estragar o momento. Deixou-se estar e sentiu o calorzinho do sol, novamente fechando os olhos. Quando os reabriu ela não estava mais lá. Paciência.

Voltou à cidade e, com uma fome de touro, sentou-se em um restaurante muito simpático, todo envidraçado, de onde dava para ver uma fonte de água no centro de uma praça. Hesíodo já recomendava aos camponeses, sete séculos antes de Cristo, a sentarem-se perto de um curso d'água no verão, depois da colheita, no momento feliz do descanso. Meu primo ali estava, feliz. Conversava com um padre da igreja ortodoxa, com barbas compridas e um apetite interminável. De repente, surgida não se sabe de onde, ela apareceu. Sentada na beira da fonte. Olhar perdido.

Meu primo temeu a ira dos deuses, que claramente lhe proporcionavam uma segunda chance. Pagou a conta num segundo, abriu a porta e foi na direção dela. Não sabia bem o que iria dizer, isso não importava. Nem precisou pensar em nada. Quando estava perto ela sorriu e disse, em inglês:

- Oi, quer tomar um café?

Pois é, ninguém acredita, mas foi assim mesmo. Ela lembrava dele, óculos escuros, tomando sol na cobertura do palácio, achou que ele fosse italiano. A conversa era fácil, leve, parecia um roteiro escrito há mil anos. Ela estava ali passando férias, na verdade tentando curar as feridas de uma relação que não dera certo. Já estava há quinze dias em Creta, já havia bebido vinho, já havia dançado, quebrado pratos, não sabia mais o que fazer. Meu primo disse a ela que estava retornando naquele dia mesmo, de navio. Ela perguntou se podia ir com ele. Simples assim. Ela buscou as coisas no hotel e à noite embarcaram rumo a Atenas. Meu primo até hoje se lembra dela no convés do navio olhando para ele com os olhos mais bonitos do mundo, os olhos de uma mulher apaixonada.

De Atenas foram a Roma. De Roma ela seguiu para a Austrália, onde morava. Não havia Internet. Meu primo nem tinha telefone. As cartas demoravam duas semanas. Fizeram planos e planos. Se corresponderam por dois anos. Os deuses lhes deram a dádiva de um amor de sonho que vive na lembrança, eterno. Nunca mais se viram.

O grande mistério de Creta? O mesmo da vida, um labirinto sem mapa, onde a cada passo a gente pode ser devorado pelo Minotauro ou encontrar um grande amor.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sete dicas para reconhecer um zumbi

Todo baiano é meio filósofo, assim como todo mineiro é meio sábio (são coisas diferentes). Meu paizinho, que era baiano, de vez em quando voltava de uma conversa dizendo que havia sido "esvaziado". À época, nem eu nem minha irmã entendíamos nada. Claro que papai estava falando dos zumbis. As pessoas que nos sugam, para as quais somos um objeto, um meio, nunca um fim. Eles não querem a gente, querem apenas nos usar. Um zumbi faz um estrago danado. Imagina um exército de zumbis como vemos hoje. Estão por todo o lado. Há zumbis professores doutores explorando seus alunos pra ganhar bolsa de produtividade, político zumbi tem de montão, nem é bom falar, mas tem médico zumbi que examina teu joelho e esquece que o joelho pertence a um ser humano, tem zumbi pra todo lado, se perigar você até já namorou um zumbi e não sabia.

Por isso, o blog autobiografiadosmeusprimos, com enorme senso de dever, tentando ajudar a impedir que os zumbis tomem o mundo e nos mandem para outro planeta, fornece...

SETE DICAS PARA RECONHECER UM ZUMBI

1. Ele adora máquinas e detesta seres humanos

2. Um zumbi só fala de si

3. A coisa mais difícil para eles é um olho no olho mais prolongado

4. A zumbizada sorri sem parar, por nada, só pra "sair na foto"

5. Um zumbi nunca diz estar triste ou conta que algo deu errado, é um sucesso sem fim

6. Zumbi não sabe abraçar direito, beijar então, nem se fala, ele mete a boca mas a alma não vai junto...

7. Zumbi não entende nada de poesia, nem de literatura, embora possa até citar uma coisinha ou outra pra parecer que aprecia, os zumbizinhos se disfarçam bem, os danadinhos...

P.S: É brincadeira, viu? Ninguém é zumbi. Todo mundo é ser humano. Mas uns simplesmente esqueceram de como é ser humano. É duro, mas nós, os "esvaziados" por eles, é que vamos ter que ajudá-los. Mas não se deixem esvaziar, "sai pra lá, zumbi!"

Pior do que uma seta venenosa

Em um debate muito bacana, um filósofo, um físico e euzinho, que não sei bem o que sou, conversavamos com 200 jovens sensacionais em um curso pré-vestibular de São João de Meriti. Uma aluna, de nome Larissa, emociona a todos. Pergunta aos atônitos palestrantes se eles não acham que toda a parafernália eletrônica de celulares, tablets e internet tornou as pessoas mais hostis, mais duras. O filósofo, que não gosta nem de falar ao microfone, reforça a hipótese, sublinhando as alegrias do olho no olho. O físico, muito inteligentemente, lembra que a Idade Média era bem mais hostil.

E eu? Sem saber o que dizer, fico apavorado com a responsabilidade diante daquelas vidas tão vivas ali diante de mim, esperando uma resposta: hostil ou não. Peço ajuda aos deuses gregos que nunca me deixam na mão. E  lanço mão dos sábios filósofos da Velha Guarda da Portela. Digo à Larissa e aos 200 alunos que o que existe hoje não é hostilidade. É bem pior. A hostilidade, o ódio, a violência, de certa forma reconhecem o outro, mesmo que seja como um inimigo.

O que existe hoje é um processo que o velho barbudo que não era Papai Noel já manjou há mais de 150 anos. Karl Marx falava do fetiche da mercadoria. O IPhone vira um ser querido, amado, é ele que olha pra você quando você tira um selfie. Você sorri para a máquina. E os outros seres humanos viram coisas, a serem usadas. Muito pior do que a hostilidade é o desprezo, a indiferença, o não reconhecimento do outro ser humano. Isso não é culpa da tecnologia. Tudo que existe no nosso mundo humano foi construído por um determinado tipo de relações humanas. O modelo atual volta-se para as coisas. As coisas falam, as coisas ouvem, as coisas interagem. Para elas, nosso carinho, nosso bem mais precioso, o tempo. Damos tempo e mais tempo para ter mais e mais coisas. Sobra pouco tempo para outros seres humanos como nós. Eles recebem de nós o desprezo, o pior dos venenos como ensina o samba de Alberto Lonato, "Você me abandonou":

http://letras.mus.br/velha-guarda-da-portela/937706/

Você me abandonou 
Ô ô eu não vou chorar
Mas hei de me vingar
Não vou te ferir
Eu não vou te envenenar
O castigo que eu vou te dar é o desprezo 
Eu te mato devagar
O desprezo é uma arma perigosa
È pior do que uma seta venenosa 
O desprezo para quem sabe sentir
Muitas vezes faz chorar
Outras vezes faz sorrir