Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Senzala invisível

Na verdade, eu me lembrei da correção das provas do vestibular por conta do que me aconteceu neste início de abril de 2014. Fui passar o fim de semana com minha filha pequena em Vassouras. Como todos sabem, Vassouras já foi a maior produtora de café do mundo lá pelo ano de 1835. Ainda hoje a cidade ostenta uma certa graça, na belíssima praça da Matriz, em um conjunto significativo de prédios históricos, alguns em bom estado, outros em recuperação. Fico imaginando o que era esta cidade na primeira metade do século XIX, em seu apogeu econômico e político. Como ensina Walter Benjamin, todo monumento de civilização é também um monumento de barbárie. Cada parede, cada janela, cada rua de Vassouras, foram feitas pela mão de homens e mulheres escravizados e graças à riqueza que eles produziram. Pode-se olhar para um belo prédio do XIX e imaginar em cima de quanto suor e de quanto sofrimento humano ele foi erguido.

Corta para outra cena. Decido visitar uma fazenda de café. Não vou dizer qual, por motivos que ficarão claros. Posso dizer apenas que em seu auge ela foi uma das fazendas mais grandiosas da região. Sua área total chegava a 1.000 alqueires (algo como 4.800 campos de futebol). Ali trabalhavam 200 escravos. A Casa-Grande, em uma época em que janelas com vidros eram sinal de status, tinha 64 janelas. O comprimento da casa, de uma ponta a outra, é  de 70 metros.

Mas o que eu quero contar é outra coisa. Quero contar e analisar a narrativa feita pelo guia da visita e atual proprietário da casa. A primeira coisa que ele destaca, além do tamanho da propriedade, é o fato de que a escolha do local foi baseada na questão da vigilância. Da janela da Casa Grande podia-se controlar quem estava chegando, bem como visualizar a área onde os escravos trabalhavam. Sobre estes, disse o nosso guia ter realizado "pesquisas" e chegado à conclusão de que valiam o equivalente a um "carro popular". Em seguida, começou a criticar a Abolição, segundo ele uma lei muito mal pensada, pois a libertação deu-se em maio. Como a colheita do café se inicia em junho, lamentou ele, o café ficou todo no pé, nada foi colhido. Que pena! Embora tenha sido o último país do mundo a abolir a escravidão, o que nos tornou párias na comunidade internacional, parece que não foi tempo suficiente para pensar como fazer a Abolição. A nossa classe dirigente pensava muito devagar mesmo. Quanto à colheita, nosso guia estava enganado. No ano da Abolição houve uma perda de 37%. Ou seja, mesmo já livres, os ex-escravos colheram ainda 63% do café. Não ficou tudo no pé.

Em seguida ele atribui o fim da lavoura cafeeira em Vassouras à Abolição. Outro erro colossal. A "Civilização" do café no Vale do Paraíba fluminense não era sustentável. A cultura do café por ali se baseava na destruição a ferro (machado) e fogo (queimada) da Mata Atlântica. A terra era extremamente fértil mas por um período curto, de 20 a 25 anos. A "solução" dos proprietários, embora à época já se conhecessem métodos de fertilização e compensação, foi simplesmente derrubar mais floresta. Até que não houvesse uma só árvore. A médio prazo, o café de Vassouras era um projeto fadado ao fracasso, com ou sem escravos. Nosso guia aponta um pedaço de mata à nossa frente e comenta: foi reflorestado pelos passarinhos. Claro: quem mais o faria?

A crítica que ele fez à Abolição não parou por aí. "Imagine que você compra um carro e pode usá-lo à vontade", prosseguiu ele explorando sua comparação anterior. "De repente, você tem que pagar por ele", explica nosso guia, "é claro que você não vai querer". Segundo ele, o resultado teria sido o abandono do café pelos fazendeiros desgostosos de terem que pagar a seus carros, ou melhor, a seus ex-escravos, pela utilização dos seus corpos. Errado novamente, completamente errado. A safra do ano seguinte à Abolição, foi exatamente igual à safra do ano anterior à lei. Ou seja, os ex-escravos, em sua maioria, permaneceram ali. Ou será que sinhozinho e sinhazinha colheram o café com as próprias mãos?

Agora é que vem o mais inacreditável. O atual proprietário da Casa Grande explica pacientemente as consequências de uma lei tão "mal pensada". "Depois da Abolição", observa ele, "vocês já sabem o que aconteceu: favelização, violência urbana, prostituição...". Eu fiquei petrificado.

Por incrível que pareça, essa visão dos "males da Abolição" também estava muito presentes nas milhares de provas que meu primo e seus colegas corrigiram durante uma semana. Centenas e centenas de jovens repetiam a ideia de que a libertação dos negros escravizados era a causa dos nossos maiores problemas. É a imagem da invasão de um contingente de bárbaros. No caso do Rio de Janeiro, nada mais falso. A maior concentração de negros, livres e escravos, foi alcançada por volta de 1850, muito antes da Abolição. A violência sempre existiu e a escravidão era a maior violência, que dava o tom para todas as outras relações, mesmo entre "livres". Coloco aspas porque no tempo dos barões uns eram mais livres do que outros. As favelas, por sua vez, surgiram por conta do descaso das autoridades quanto à questão da habitação pública. A primeira delas, que deu nome às outras, é proveniente do atraso do pagamento das pensões aos veteranos da Guerra de Canudos. Enquanto esperavam, que subissem o morro e acampassem lá em suas barracas. O povo que se vire!

Voltemos à visita. Sobre a origem das duzentas "peças" que trabalhavam e que foram responsáveis por todo aquele esplendor, nosso guia não dá uma palavra. Apenas aponta para um lado e depois para outro dizendo: "Ali ficava a senzala dos homens" e "Ali ficava a senzala das mulheres". Esta separação, logicamente, era um instrumento de controle, punindo ou recompensando os escravos homens por seu comportamento. Além de facilitar o uso e abuso do corpo das escravas pelos senhores. A senzala feminina, aliás, ficava bem mais perto da Casa-Grande. Afinal muitas escravas deviam trabalhar na casa e também representavam um perigo menor para os senhores. Pergunto ao nosso "guia" (a esta altura creio que as aspas se justificam) se posso dar uma olhada na senzala feminina e ele diz não valer a pena: "não sobrou nada", diz ele.

Mas a senzala ainda estava lá, com suas janelas bem altas gradeadas a 45 graus, com suas portas de madeira e arcos de pedra. A preocupação com a fidedignidade histórica levou o casal de proprietários a buscar incessantemente e a alto custo objetos em leilões para decorar a casa, substituindo os móveis originais totalmente desaparecidos durante o período de abandono da propriedade. O mesmo não aconteceu em relação à senzala. Em frente à senzala das mulheres, devia existir um terreiro onde os escravos dançavam o jongo aos sábados à noite em torno da fogueira. Cantavam pontos cifrados que seus senhores, por ignorância e por falta de interesse, não entendiam. Faziam críticas pesadas como "Com tanto pau no mato, embaúba é coroné", comparando o proprietário a uma árvore de madeira  imprestável e que sequer dava sombra. Neste lugar, hoje há uma piscina e o antigo abrigo-prisão das escravas serve de vestiário para os neo-sinhozinhos trocarem de roupa.

Havia outras pessoas na visita, uma delas uma pedagoga muito falante e perguntadora. Ninguém, todavia, exceto eu, perguntou alguma coisa sobre a senzala ou sobre os escravos. Todos queriam saber sobre a visita da Princesa Isabel em 1884 e acerca do jantar com menu em francês e 14 serviços diferentes. Ou sobre o lustre que decorava a sala. Em meio da visita, um momento solene, vamos todos para a mini-capela. Ali, a atual proprietária, uma loura de farmácia, diante dos visitantes reunidos tocou com suas mãos "brancas" um pouco de piano. Música escolhida: Em algum lugar do passado. Um clima de "E o Vento Levou...", de saudades da escravidão.

Ao fim da visita, em uma sala magnífica decorada com móveis e objetos de época, todos comiam seu bolinho e tomavam seu cafezinho tranquilamente. Posto na mesa por uma empregada historico-sociologicamente negra que entrou e saiu da sala de forma discreta e silenciosa. Talvez não tenha sido nem vista, talvez seja ainda invisível. Mas foi a mão dos seus antepassados que construiu toda aquela riqueza.

Samba do calouro doido e outra história mais doida ainda - parte I

Todos os meus primos compartilham certas características. Todos têm nariz avantajado, torcem pelo Flamengo e vivem numa pindaíba de dar gosto. Sendo assim, não é de se estranhar que um deles tenha topado, certa vez, a tarefa suicida de trabalhar na correção das provas do vestibular da UFF. Em uma grande sala, sem ar condicionado, um grupo de companheiros de infortúnio, movido a doses cavalares de cafeína, corrigiu seis mil provas. De vez em quando um dos bravos corretores parava tudo para rir desbragadamente. Em seguida, compartilhava mais uma pérola saída da cabeça de um anônimo vestibulando atrapalhado em meio a um cipoal de datas, fatos e interpretações. Era o nosso momento de relaxamento, embora muitas vezes também tivéssemos vontade de chorar.

A certa altura, meu primo, gaiato que só, disse que seria possível até fazer um samba-enredo com o conteúdo daquelas respostas tão criativas. Um outro professor, mais taciturno, logo o desafiou: então que você o faça! Bem, vocês conhecem estes primos que tenho.. No dia seguinte, antes do início da jornada de trabalho, meu primo apresentou com toda pompa e circunstância esta obra humilde e historicamente incorreta, muito incorreta, chamada Samba do Calouro Doido:


Negrinho, ô                          |
Negrinho, ô                          |     REFRÃO
O Ventre Livre                     |
Era um tremendo dum caô |

Ó Seu Getulho aí, gente !    

Lá, na Romênia africana,
Portugal invadiu Botswana
Mas, o inglês que não se entrega
Colonizou a Noruega
E a tal Princesa Áurea,
Que também não era otária
Baixou a Lei Sexygenária

O Estado Novo consilhou
E na hora entregou:
O culpado é o professor
(repete)

Falo do milagre brasileiro,
Caetano, Gil e Comando Vermelho,
Por causa que a inflação subiu
No outro dia, já decaiu
O escravo era livre,
E o livre era escravo,
Só depois de pagar pedágio

Senhor de engenho Zé Mané,
Manda escravo planta cana
Em plena crise do café
(repete)

É OU NÃO É ?



Shopping

Alegres batalhões devoram grifes logos promoções vitrines crediários o-novíssimo-plano-para-falar-infinitamente-e-nunca-ouvir e se acotovelam polidamente em busca da inexcedível chance de entupir os intestinos de gordura multinacional pra morrer mais cedo em troca de suados caraminguás. Aqui a Civilização Ocidental encontra seus mais fiéis defensores, os que lutarão até o último sundae de caramelo (capricha na castanha). É uma apoteose de estupidez compartilhada. Menos um planetinha no sistema solar...

terça-feira, 8 de abril de 2014

Eros

EROS


Tu uniste Uranos e Gaia e permitiste toda essa gandaia de deuses e homens correndo atrás de saias. E bem mais do que isso. Se eu fosse contar com quantas flechas já me atingiste, no próximo carnaval poderia sair de São Sebastião. E as oferendas de paixão e esperança que já depositei em teu altar? Estes humanos são muito teimosos, deves pensar. De vez em quando nos dás um sorrisinho mas de resto és só gargalhada. Quando abres os portões da tua mansão, extasiados passeamos no jardim das delícias. Somos atravessados por tua força e por alguns instantes nos sentimos deuses. "Tudo vale a pena se a alma não é pequena" não é mesmo? A ressaca é brutal. Mesmo assim retornamos a empurrar montanha acima a pedra que o poeta dizia estar no meio do caminho.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Idiotas da objetividade

Desperto de madrugada, feliz da vida por mais um dia que os deuses me concedem. Ligo o rádio. A CBN informa, com toda uma aparente objetividade, que mais de 150 "mendigos" são assassinados por ano no Brasil. São queimados, executados com tiros na cabeça, espancados. Mas além da chocante violência "gratuita" de homens contra homens, também me fere a palavra "mendigos". Aqui talvez a violência simbólica preceda a violência propriamente dita, servindo para justificá-la e reproduzi-la. Por que não chamar estas pessoas de "moradores de rua", uma expressão descritiva e não estigmatizante como "mendigos"? É como se a mídia os assassinasse novamente, a cada dia, sem parar.

Vida engraçada

A vida é engraçada. Chegando em casa, de ônibus, cansado, carregando um embrulho pesado, não fico nada satisfeito quando o motorista me deixa bem antes do ponto. Mas por conta disso ouço o som de um pandeiro, avisto uma roda de samba, chego de mansinho e passo algumas horas em ótima companhia, tocando, cantando, brincando. Valeu, motorista! Os deuses são bons.

Se os deuses continuarem bons...

Se os deuses continuarem bons, voltarei árvore. Viverei do básico: sol, ar, chuva, terra e um ventinho de vez em quando que ninguém é de ferro. Não preciso ser um imponente jequitibá ou uma palmeira imperial. Basta ser uma árvore daquelas de praça, que dão boa sombra. De manhã serei acordado com os passarinhos, que voltarão a tarde para comemorar o dia que passou. Brincando de esconde-esconde, mãozinhas de criança vão afagar meu tronco, outras irão me escalar e se balançar nos meus galhos. Nascerei e morrerei a cada dia, em cada folha que cai, em cada outra que brotar. Acharei graça dos cães a urinarem em mim pensando que assim sou parte do seu território. Sentirei dor quando pregarem uma placa em mim, mas pelo menos que seja para achar uma criança e não para vender um apartamento. Pode ser que os cupins, que afinal também têm que comer, venham me roer. Ou que eu morra romanticamente abraçado a uma trepadeira rsrs. Mas prefiro ser cortado por machado de aço para fazer uma canoa ou quem sabe um bom pandeiro a ser tocado para as morenas de todas as cores dançarem.

Academia

Os PhDeuses estão para os sábios assim como a margarina para a manteiga. Florestas dizimadas para que se repitam as mesmas teses e os mesmos artigos, com nomes diferentes porque os pontinhos são preciosos. Sai o chicotinho de ponta, que pode ter usos criativos e entra o implacável chicote de pontos e prazos. Em cada aluno, uma cifra em potencial (te devo essa João Alípio). A sabedoria liberta. O saber aprisiona. Muitos querendo ensinar, poucos querendo aprender. Núcleos, laboratórios, oficinas, workshops, congressos onde ninguém ouve ninguém. Traficantes de papel. Hoje cinco meninos foram assassinados na favela de Acari. "Pois é, isso acontece muito nesses lugares. Quando é mesmo a qualificação da sua aluna?". Se cuspo com vontade e asco no prato em que como é que sei como ele é preparado. Ei Fapesp, Faperj, Capes, Cnpq, vão todos se f... "A sabedoria é transmitida de boca em boca" (Brecht via Bernardo Soares). O espaço sagrado da troca e do diálogo, a sala de aula, chamado pelo medalhão de "vala comum". Barbárie. "Professor, o que é que vem depois do pós-doutorado? Um negócio chamado morte, minha filha".

Rumo ao Escolão

Conversando com o coordenador do curso de História da UFF, acabo de descobrir que o nefando REUNI obrigou todos os cursos de graduação a aumentarem seus módulos de 40 para 62 alunos por sala. Rumo ao escolão...

O que o dinheiro não compra

Gente, eu juro que não dei nenhum dinheiro para o competente jornalista Caio Barbosa escrever isso, é que tem coisas que o dinheiro não compra. Obrigado, Caio, por essa eu não esperava. Um grande abraço.
O SAMBA DE ALVITO - ENTRE A RUA E A UNIVERSIDADE

Estive ontem à noite com o querido Marcos Alvito, no lançamento do seu delicioso livro "Histórias do Samba", que conta 100 causos deste ritmo musical que, como bem canta Paulo Cesar Pinheiro, tanto faz de onde é que vem, tá no sangue, tá no gen, tá em quem gosta de samba.

Alvito é um pouco daquilo que eu tentei ser, como cientista social, e não consegui. Doutor em Antropologia pela USP, é professor de História da UFF, onde estudei e nos conhecemos, mas não nos bancos escolares, e sim nos do Pardal e da Elvira, na mítica pracinha de São Domingos, na década de 90.

Estudioso, competente, cara de CDF, Alvito tinha tudo para ser como aqueles intelectuais de almanaque, que mergulham nos livros e muitas vezes tornam-se incapazes de compartilhar tamanho conhecimento, de dialogar com a sociedade, de fazer a ligação entre a academia e o que está à sua volta, ou seja, o mundo.

Professor, doutor, querido pelos alunos, Alvito não se constrangia em sentar à mesa com pós-adolescentes bebuns, ouvir deles suas histórias, beber naquele universo tão interessante mas por vezes tão repugnante para a intelectualidade. Camisa do Flamengo, pandeiro na mão, Alvito sempre foi bom professor e bom ouvinte. Queria saber mais sobre torcidas organizadas, bailes funks, tráfico, preconceito, temas em voga há 15, 20 anos.

Deste balaio, desta sensibilidade, saiu mais um livro do Alvito. Gostoso de se ler como o samba é de se ouvir.

Recomendo com força. (Caio Barbosa)

Porrada's Cup

Esses jogos preliminares da Copa das Confederações estão muito sem graça. Em Brasília, 1.700 pms castigam impiedosamente apenas 500 manifestantes. No Rio a PM persegue os baderneiros até a Quinta da Boa Vista atirando bombas de gás lacrimogêneo nas criancinhas. Como diria o filósofo Joseph Blatter: onde está o fair play? Esse time dos estudantes é muito fraco, não batem em ninguém e ainda ficam gritando "sem violência". Amadores que não entenderam o espírito da coisa. Ficar protestando pacificamente, entoando palavras de ordem e cantando o hino nacional diante do Batalhão de Choque? É pedir para apanhar.
Aproveito para propor um campeonato de verdade: a Porrada's Cup, mas que também pode ser chamada de Torturadores da América, nome do agrado do atual presidente da CBF, apreciador da nobre arte de Fleury e congêneres. A FIFA emprestaria as suas arenas (nome apropriado). Poderiam disputar todas as pms do Brasil e é claro que valeria de tudo: atropelar pessoas com moto, passar por cima a cavalo, dar tiro de borracha no olho e, é lógico, muito cassetete, temperado com uma nuvem de gás pimenta. Não me arrisco, porém, a prever o resultado, vai ser uma competição muito, muito dura. Os técnicos seriam os comandantes, é lógico e o presidente seria o respectivo governador a quem a força policial está subordinada. Cabral tem boa chance de ser campeão embora o time de Alkmin também esteja batendo um bolão.
O time vencedor da Torturadores da América ganharia uma viagem (superfaturada) a Guantánamo, onde poderia disputar uma partidinha nada amistosa contra os detentos. O MVP, o Mais Violento Porradeiro da competição, teria o direito a participar do UFC pra encarar Jon Jones ou Anderson Silva, afinal pm que é pm adora a dar porrada em negão. Só que o pm MVP teria que lutar sem capacete, escudo, cassetete, spray de pimenta, colete à prova de bala e pistola. Poderia até chutar o adversário caído, mas nada de quinze contra um, teria que ser no mano a mano. Acho que iria ficar difícil para o Cabo Oliveira...

O tempo das bolinhas pretas

Esse primo era bem garoto, tinha seus dezessete anos. Naquela tarde, estava na Av. Rio Branco, na lateral do Teatro Municipal, ouvindo instruções sobre como panfletar sem ser preso. Diante de vários montes de panfletos de Modesto da Silveira, um advogado de presos políticos que era candidato a deputado, um homem mais velho, extremamente sério e carruncudo, explicava o que fazer para um bando de rapazes e moças.

Meu primo não sabia, sempre foi um ingênuo, mas o candidato estava sendo apoiado pelo PCB, então na ilegalidade. Fora convidado a participar por companheiros de escola e obviamente topara. Ele lia todos os jornais alternativos, o Opinião, depois o Movimento, o Versus e, é claro, O Pasquim, seu preferido desde os 14 anos. Quando o general-presidente de plantão discursava na televisão meu primo batia boca com ele (sem gritar), para desespero dos seus pais.

Toda a sua adolescência foi marcada pela Ditadura Militar, que emparedava o cotidiano da juventude: meu primo ouviu Apesar de Você de Chico Buarque, que seu pai comprara antes de ser retirado das lojas. Ele mesmo tivera a sorte de adquirir e ler Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca antes de ser censurado. Viu Laranja Mecânica com ridículas bolinhas pretas acrescentadas à genitália das personagens. Era até gozado ver aquelas bolinhas se moverem de lá pra cá. A atmosfera de medo era tão sólida quanto um queijo e fedia bem mais.

Meu primo, sem saber, iria correr o risco de morrer ao ir a um show no RioCentro em 1981. Só pode votar para presidente aos 29 nove anos de idade. Quando entrou na universidade, ainda havia muito temor de que algum dos alunos fosse informante do DOPS.

Naquela tarde de 1978, depois de receber a parte que lhe cabia dos folhetos, meu primo caminhou juntamente com os companheiros em uma passeata, distribuindo o material do candidato. Até que a polícia desfez a manifestação com a gentileza habitual daqueles tempos (e não somente daqueles tempos). Aí não foi preciso nem mesmo lembrar de qualquer instrução. Foi pernas pra que te quero, correndo em meio às mesas do Amarelinho.

As pernas já não são as mesmas, mas o horror à Ditadura Militar implantada em 1964 permanece, altaneiro.

Prefiro não fazê-lo

Filho de baiano, nascido em terras cariocas, sou um sujeito muito preguiçoso. Odeio produzir. Gosto de dialogar, gosto de pensar algo e de estimular a reflexão de um grupo. Quase sempre aprendo mais do que ensino. É o que eu chamo de aula. Aula não se produz, aula se constrói. Aula é que nem o amor, quanto mais se divide, mais se multiplica. 

Também não gosto de produzir artigos ou livros. Gosto de elaborá-los lentamente, à medida em que a pesquisa e a reflexão vão seguindo seus caminhos misteriosos e aventureiros. O que eu tenho é pouco, como diria Paulo Vanzolini, mas é meu e vai comigo. Parece óbvio, mas só publico um livro ou artigo se acho que tenho algo a dizer e algo que talvez possa interessar a alguém. Não se devem cortar árvores à toa. O que posso dizer é que curti cada linha que escrevi.

Como bom preguiçoso, odeio prazos, desprezo linhas de montagem. Dois anos para que um aluno faça matérias de pós-graduação, desenvolva a sua pesquisa, escreva uma dissertação e se apresente diante de uma banca é uma crueldade. E na maior das vezes, uma mentira. Poucos, como era de se esperar, conseguem fazê-lo com um mínimo de qualidade. Aí entra em cena o "pacto produtivista": você aprova meu aluno que eu aprovo o seu. Qual foi a última vez em que vocês ouviram falar de alguém ser reprovado no mestrado ou doutorado?

Todo mundo virou gado tangido à ponta do chicote CAPES-CNPq. Em nome do status de pesquisador e dos minguados caraminguás da bolsa de produtividade, tudo o que importa é cumprir os prazos, desovar (termo nativo) as dissertações e teses, produzir os artigos e os livros. Os colegas que não forem "capazes" de seguir esta norma são sumariamente expulsos como se fossem leprosos na Idade Média.

Antes as relações entre alunos e professores poderiam ser caracterizadas como um kula do conhecimento, um círculo de trocas que nunca se fechava e continuava por décadas: no próprio kula há objetos que só retornam após 10 anos. Agora todo esse ecossistema intelectual está sendo destruído. Agora o que impera é a troca mercantil, interessada e desinteressante.

É claro que há muitas exceções, mas estou descrevendo o sistema e seu funcionamento. O subproduto humano dessa catástrofe produtivista é a doença nas mais variadas formas: esgotamento físico e mental, doenças nervosas e um empobrecimento das trocas humanas em geral.

O que fazer diante disto tudo? Sou um modesto professor e ainda mais humilde pesquisador. Só me resta tirar meu time de campo. Minha última orientanda defendeu sua dissertação no final de março de 2014. Agora vou me dedicar a esta atividade vil e ignominiosa, chamada recentemente por um colega do meu departamento de "vala comum": dar aulas na graduação. Ainda bem que não é considerada atividade produtiva pelos burocratas, gosto dela assim, uma mera relação entre seres humanos.

Um velho malandro chamado Aristóteles já dizia que dividimos certas tarefas com os animais, produzir nossos meios de subsistência é uma delas. Só é ser humano, e nisto os sambistas, os jongueiros e o velho filósofo concordam, quem cria, quem inventa. Para mim o espaço da sala de aula é ainda o espaço da possível liberdade. Ali eu consigo ser feliz, porque me sinto humano entre humanos. Pós-graduação, neste sentido, nestas condições, é escravidão individual e coletiva.

Sendo assim, quando me perguntarem: você não está na pós-graduação? Você não orienta? Ou até: você não produz? Lembrarei da linda novela de Herman Melville, Bartleby. Nela o protagonista que dá nome ao livro responde a perguntas desta natureza sempre da mesma forma: "prefiro não fazê-lo".

Vai, Messi!

Dobram, triplicam o preço dos ingressos, transformando o Maraca fake em um estádio de brancos e depois me aparecem com uma faixa dizendo alma não tem cor. Não sei se choro, se rio ou se danço um tango e torço pro Messi na copa....

Além do mar de placas que não permite às 15 primeiras fileiras atrás do gol a visão deste detalhe irrelevante que é a linha do gol, o Maraca fake de 1,2 bi inova mais uma vez. Colocaram duas faixas bem ao lado das redes impedindo a visão dafamosa "a nega tá lá dentro". Queria parabenizar o gênio publicitário capaz de me despertar um nojo crescente pelo futebol brasileiro profissional. Por ironia, as faixas são de um curso de inglês. É que na liga americana eles não fazem isso. Viva o fut-capital selvagem.

Acabaram até com os gandulas, agora são uns marmanjos sem graça, decerto utilizados para que possam vestir as camisas com as logos dos patrocinadores. É impressionante a fúria publicitária que toma conta do Maraca fake: é o telão, é o gramado, as redes, sem falar nas horrendas (apesar de existentes há décadas) propagandas nas camisas em que o escudo do clube parece ser apenas uma logo de menor expressão.

Outro dia, voltando de um compromisso, caminhava despreocupado pelo calçadão da praia de Ipanema. Naquele horário, há muitas escolinhas, sobretudo de vôlei e de futebol. Em todas elas, eu disse todas, as camisas que as crianças, jovens e até as que o pessoal de meia idade vestia havia logomarcas.

Em breve as empresas irão oferecer tatuagens corporativas, remunerando o uso da pele, obviamente. É só o que falta para marcar este admirável gado novo que somos nós. Será a vitória a ferro e fogo do capitalismo global.

Chupa!!!

Fico estarrecido ao ouvir nesta rádio marxista-leninista-maoísta radical de extrema esquerda que é a CBN-RJ a seguinte informação: a Copa de 2014 vai custar mais do que as três últimas copas juntas!!! Como dizem os paulistas: chupem Japão-Coréia do Sul, chupa Alemanha, chupa África do Sul!!! Brasssssiiiiiil!

Uma ciência bem estranha

A economia é uma ciência bem estranha. Nela a conta depende de quem a faz. Para os economistas do governo, o déficit da Previdência é de 40 bilhões de reais. Para os economistas da oposição, a conta chega a 50 bilhões. Como não sou economista, não sou do governo, nem da oposição (não deste tipo de oposição), faço a média simples e chego ao resultado de 45 bilhões de déficit. E aí descubro assustado que se somarmos a conta da Copa (26 bi) com a conta das Olimpíadas (20 bi), temos 46 bilhões.

Não só zeramos o déficit da Previdência mas até sobra um bilhãozinho, quem sabe para aplicar em escolas, hospitais ou em um cursinho rápido de Direitos Humanos para os nossos policiais militares. Ao invés disso, demos dinheiro para empreiteiras, empresas de ônibus, presidentes de clubes corruptos e toda uma corja que não vou nomear aqui porque acabei de almoçar. Pronto, só isso.

Meu primo vira doutor, que horror

"Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... (...) as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou ? Como está, doutor ? Era sobre-humano !..." (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

Não tinha do que reclamar, a vida estava boa. Casado, com um bebê menino que amava mais do que tudo, meu primo estava em festa. Começara a fazer o doutorado em antropologia na USP, com um tema bacana, o corpo feminino em duas sociedades bem diferentes, Atenas e Esparta. O resto ele mesmo contou no capítulo zero de As cores de Acari: a ida à penitenciária a convite do amigo Marcelo Freixo, o abandono da tese em favor de uma pesquisa com os presos, o aluno que o aborda na rua e diz a ele que está louco por jogar a carreira fora, a proibição de entrar na cadeia e finalmente a pesquisa em Acari.

Vou pular a parte de Acari porque a história que quero contar hoje é outra. Mas basta dizer que lá meu primo, que era um bicho de academia, com direito a óculos e pastinha, foi devidamente humanizado. Dona Marlene, cujo nome agora posso dizer com todas as letras, nem deixou meu primo agradecer por toda a hospitalidade com que foi tratado. Olhou para ele meio séria, mas com um certo escárnio bem acariano e disse:

- Nem precisa me dizer o quanto fiz por você, quando você chegou aqui não sabia nem sorrir

Nem sorrir, nem contar piada, nem zoar, nem perceber, como diz Paulinho da Viola, "que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber, que as mãos, não conseguem tocar". Acari ensinou aquele meu primo a ser gente.

A pesquisa foi difícil, ele era novato e não era tão tranquilo assim entender tudo aquilo que estava acontecendo: polícia, bandido, morador, pastores, políticos, repórteres, líderes comunitários e aquele sujeito deslocado, branquelo, com um par de óculos tão gozado que o bom humor acariano logo batizou, em um lance de ironia absoluta, de super-homem.

A coisa mais chocante que lhe aconteceu naquele período não se deu em Acari. Um dia foi à universidade entregar uma documentação. Encontrou duas colegas, ambas especialistas consagradas. Contou a elas, horrorizado, que dois dias antes cinco menores haviam sido mortos com um tiro na cabeça. Colocados em um muro e assassinados. Meu primo assistira à luta de uma senhora para tentar lavar da calçada em frente à sua casa uma enorme poça de sangue. Elas olham o meu primo por dois segundos até que uma delas comenta, em tom casual, que coisas como aquela acontecem muito nesses lugares. Em seguida, passam a combinar a data de defesa de alguém.

Milagrosamente, conseguiu terminar a tese no prazo, o que para ele era uma questão de honra, palavra cujo significado aprendera nas ruas, vielas e becos da favela.

Um dia antes da defesa, já nervoso, vai almoçar com a família na casa da sua mãe e, quase que por reflexo, abre um volume da coleção de Os Pensadores: Santo Agostinho. Uma frase lhe chama muita atenção. O ex-pecador, tornado um dos maiores filósofos da Igreja, humildemente, mas de maneira resoluta, assinala: "sou apenas um fragmentozinho da Criação". Somos muito pouco, mas parte de algo muito maior.

Chega o dia. A USP, até por conta da sua história, segue a tradição francesa, bem mais formal. Lá é o professor que decide as matérias que você vai cursar na pós-graduação, por exemplo. Sem assinatura do orientador, você não se inscreve em nada.

A sala era um auditório grandioso. Três paredes estavam "decoradas", hesito em usar o termo, com fotos emolduradas de todos os reitores que a veneranda instituição já tivera. Havia poltronas confortáveis e um razoável público, uma surpresa para meu primo. Lá estava Deley de Acari, o poeta e líder comunitário que servira de mediador para meu primo entrar na comunidade e lhe ensinara muitas e muitas coisas. Meu primo fornecera-lhe a passagem, dizendo que ele seria o representante de Acari naquele dia, encarregado de contar à rapaziada como fora a tal "defesa".

A banca era composta da orientadora, a maravilhosa Maria Lucia Aparecida Montes e mais quatro professores, um historiador, um antropólogo e duas antropólogas. Cada um tinha vinte minutos para fazer comentários críticos e perguntas ao candidato, que teria o mesmo tempo para responder.

A banca ficava em um estrado bem alto, como se fosse um palco, de frente para o público. O candidato, ficava sentado em uma cadeira na lateral do auditório, de acordo com sua posição liminar, nem doutor, nem platéia.

Depois da exposição inicial, veio a primeira arguição, feita por um historiador merecidamente reconhecido. Ele foi gentil, generoso e educado. Até aqui, tudo bem.

A segunda arguição durou o dobro do tempo previsto e permitido. Foi feita por uma famosa antropóloga, que já havia publicado bastante acerca do tema. Foram 40 minutos de boxe intelectual. Meu primo foi acusado de tudo um pouco. De ter se aproveitado do poeta Deley de Acari sem dar-lhe crédito na tese. De nada valeu o protesto do próprio Deley na platéia. De não citar a referida professora de forma suficiente. De uma série de enganos teóricos imperdoáveis. E, por fim, de ter escrito uma tese que se lia como se fosse um romance policial.

Meu primo, mais do que chateado, ficou triste. De qualquer forma, começou a responder agradecendo, dizendo que era apenas um aprendiz e que realmente tinha muito a aprender. No meio da sua fala, na qual decerto havia também uma ponta de ironia, foi interrompido pela doutora professora:

- Você parece estar querendo mostrar que eu quero reduzir você a nada...
Foi aí que meu primo se lembrou de Santo Agostinho:

- Não, professora, com todo o respeito, nem a senhora nem ninguém, poderiam me reduzir a nada. Pois como diz Santo Agostinho em suas Confissões (faltou citar a página): "sou apenas um fragmentozinho da Criação".

Ela não o interrompeu mais. Ele fechou a sua defesa (agora sem aspas) comentando a observação de que a tese estava escrita como se fosse um romance policial:

- Quanto a isso, obrigado, professora, eu não sabia que a tese estava tão bem escrita assim.

Voltou ao seu porto seguro, a sala de aula, dias depois. Nada falou acerca da defesa. Assim que a aula terminou, perguntou aos alunos:

- Vocês notaram algo de diferente na aula de hoje?

Não?

Pois vocês acabam de ter aula com um doutor

P.S: Há quem fique curioso em saber o nome da professora doutora, mas isso é irrelevante: ela também representa apenas o fragmento de uma coisa bem maior chamada Academia.

Meu primo, que nada sabia, começa a ensinar

Acho que esse primo tinha uns 21 anos. Numa noite de terça-feira foi surpreendido pelo telefonema de um amigo. Era um convite, à queima roupa, para lecionar em uma escola da Baixada Fluminense, mais precisamente em São João de Meriti. O começo era imediato: às 19 horas do dia seguinte, uma quarta-feira. Assim que desligou, meu primo começou a preparar uma aula sobre Pré-História.

A escola ficava em um bairro famoso pelas confecções e lojas de roupas. Saindo deste centrinho, ele seguia por uma rua desolada, sem árvores, sob a trilha sonora dos cultos das igrejas evangélicas.

O estabelecimento era privado e o dono, que se dizia comunista, morava em uma mansão em Niterói, só bebia uísque escocês e pagava menos do que o piso salarial aos seus professores. Os estagiários, como meu primo, recebiam a metade do abaixo do piso, uma fortuna. Todo mês, meu primo recebia seu salário e ia ritualmente à Livraria Leonardo da Vinci comprar um livro. Eu disse um.

Ele sobreviveu ao primeiro dia. Claro que estava muito nervoso. Primeiro começou a desenhar um mapa no quadro para depois perceber que o Mar Vermelho não estava onde deveria estar. Nunca mais tentou desenhar um mapa. Assim que acalmou os nervos viu apavorado o diretor entrar em sala e se aboletar em uma carteira na primeira fila. A pergunta que ele parecia ter estampada no rosto era a mesma que meu primo se fazia: será que esse cara dá pra coisa? O diretor começou a bombardeá-lo com perguntas. Quando foi ver, meu primo já estava soltando o verbo. Era matar ou morrer.

Os alunos eram doces e educados. Muitos deles eram mais velhos, por algum motivo não haviam completado a escola no tempo regular: casamento, filhos, trabalho, falta de gosto e outras coisas que acontecem às pessoas. Até os mais velhos o chamavam de senhor, o que ele fazia questão de retribuir. Foi a crença deles no meu primo que aos poucos o transformou num professor.

Houve pequenos problemas aqui ou ali. Havia um aluno com um nome bem comum que pedia para ser chamado por um nome italiano. Fazia perguntas com muita frequência e diante da calma e da tranquilidade com que meu primo respondia, resolveu radicalizar. Um dia entrou em sala atrasado, brincando com um ioiô bem gigante. A sala fez um silêncio total. Todos os olhos voltados para o jovem professor. Calmamente, sorrindo, meu primo não perdoou:
- Belo ioiô, Luigi. Para brincar com ele é preciso desmunhecar bastante. Cuidado que você pode acabar gostando.

Hoje sei que foi uma piada de mau gosto, no mínimo. Mas foi o que o meu primo conseguiu dizer. A turma veio abaixo, diga-se de passagem. E Luigi nunca mais incomodou.

Meu primo era bem jovem e, apesar de magrelo, narigudo e meio descabelado, fez certo sucesso com a ala feminina. Foi alertado pelo diretor quanto a isso. Logo no primeiro dia foi cercado por umas oito moças que não perderam tempo em lhe perguntar:
- Casado, namorado, solteiro ou tico-tico no fubá?

Como os deuses são bons, meu primo estava namorando, feliz. Mas nem isso desanimou a todas. Foram duas delas que lhe deram as lições mais bonitas daquele ano em que trabalhou ali.

A primeira era uma moça histórico-sociologicamente negra, altura mediana e magra. Assistia à aula sempre na primeira fileira e com um entusiasmo que o meu primo desconfiava não ser originário dos seus parcos dotes pedagógicos. Certo dia, entretanto, quando de uma aula sobre a democracia ateniense, a moça começou a murchar diante dele, caindo numa tristeza de dar gosto. Meu primo só tinha uma qualidade como professor: prestava atenção aos seus alunos. Sendo assim, logo pergunta a ela o porquê de estar assim. Na lata, ela responde:
- Estou triste, professor, porque aprendi hoje que os negros são escravos há 2.500 anos

Horrorizado, meu primo entendeu pela primeira vez que o que o professor diz é uma coisa, o que o aluno entende é outra. Em um país racista como o Brasil, uma jovem negra, que enfrenta cotidianamente o estigma, naturaliza a sua condição, começa a pensar que há algo nos negros que os leva a serem escravos. E era exatamente o contrário, como meu primo logo se apressou a dizer. Os escravos gregos eram quase todos brancos, muitos até louros e de olhos azuis, vindos de regiões do norte da Europa como a Trácia. Para deixar gravado, comparou:
- Eram todos mais parecidos com a Xuxa do que com você

A outra moça também era negra. E também era apaixonada pelo professor. As provas do meu primo exigiam raciocínio, capacidade de análise e de comparação. Alguns alunos tinham muita dificuldade porque estavam acostumados a provas de memorização, a famosa "decoreba". Essa moça se enquadrava nesse caso. Veio várias vezes conversar com o professor para tentar entender o que ele estava solicitando. Era muito educada e respeitosa. Mas através de colegas ela faz chegar a meu primo um LP (procurem no Google) do Djavan de presente.

O maior presente, todavia, é que ao longo do ano ela se transformou na melhor aluna dele, superando frases decoradas e desenvolvendo um raciocínio crítico. Só tirava nota máxima. Nunca abordou o professor, jamais foi inconveniente. Mas no último dia de aula entregou a ele um bilhete, em mãos. Ali o seu amor era declarado da forma mais linda possível. Ela abria mão da possibilidade de ser correspondida, pois sabia que o meu primo tinha namorada. Mas desejava a ele um vida maravilhosa, toda a felicidade no amor, filhos lindos, saúde, paz, tudo de bom. Terminava dizendo que estaria sempre torcendo por ele.

Meu primo tem essa carta até hoje.

Salve, Madureira

De uma só tacada, paguei meus tributos a Momo em 2014. Pisei o solo sagrado de Madureira. Sem dúvida é a capital mundial do samba, onde numa só rua você pode encontrar a sede do Império Serrano e da Portela, apenas isso. É que em 2014 o grande mestre Paulinho da Viola celebra 70 primaveras e no sorriso dele é sempre primavera. Fui também para comemorar o aniversário do cavaco de ouro Erickson Dos Anjos Amaral, simpatia em forma de gente. Ele que não é bobo armou um oásis embaixo da sombra de uma generosa amendoeira. Mesas, cadeiras, isopor com as geladas e aquilo ali era uma filial do paraíso. O grupo cantou Candeia, Catoni, Norival Reis, Ary do Cavaco, enfim, uma tarde gloriosa.

Para fechar fui fazer uma boquinha no Shopping Madureira. Entrei numa pizzaria e me alegrei, famílias inteiras de seres humanos histórica e sociologicamente classificados no Brasil como negros. Em meio a pardos de todos os matizes e até uns menos morenos. Algo muito próximo ao que é o Brasil de verdade. Salve, Madureira.

70 anos de azar

Brigar com o amor dá 70 anos de azar
Ou mais
Depende de quanto você vai viver.

Uma ou duas coisas que meus primos sabem sobre o Marcelo

Primeiro o aviso: todos os meus primos, sem exceção, são amigos do Marcelo, adoram o Marcelo. Portanto, esse é um texto que toma um lado, mas não pretende ser desonesto por conta disso.

Marcelo poderia ter virado bandido pé de chinelo e, a essa altura ser apenas mais um número de uma estatística macabra. Nasceu em um bairro pobre de Niteró, debruçado sobre o morro de onde vinham seus amigos e onde ele jogava bola quase todos os dias. Viu muitos ingressarem no crime e nunca mais voltarem. Outros viraram policiais, apenas o outro lado da mesma guerra.

Marcelo poderia ter virado jogador de futebol e dos bons. Pelo menos era isso que pensava o olheiro que insistiu com seu pai para levá-lo na peneira do Fluminense. Sem padrinho, Marcelo frequentou o clube por vários dias, de chuteiras na mão e um sonho na alma. Mais do que o desprezo, o que lhe doía era estar faltando aula. E o menino Marcelo decretou: vou estudar, deixa esse negócio de futebol profissional pra lá. O que não quer dizer que não tenha continuado a brilhar nas peladas do bairro, junto com seus dois irmãos.

Marcelo poderia ter sido mais um estudante de História, tirar boas notas, arrumar uma bolsa de pesquisa e ir entrando na fila, feito carneirinho, para uma carreira acadêmica. Mas lá foi ele, trabalhar como estagiário, sem remuneração, em uma revolucionária escola de 2o. Grau que estava sendo montada em uma penitenciária de Niterói. Reza a lenda que os melhores estágios eram tão disputados que havia gente que arrancava a folha da parede para os outros não saberem. Aquela ninguém arrancou. Pois só Marcelo quis ir aonde ninguém queria ir.

Um dos meus primos deu aula para Marcelo, logo no primeiro período, quando ele tinha 18 anos. Já era militante do PT, participava ativamente, mas com uma firme doçura de quem nunca (ou quase que ninguém é de ferro) levantava a voz porque sabia muito bem o que estava fazendo e o que estava defendendo. Marcelo podia não ser o melhor aluno do meu primo, mas era um aluno consciente e interessado. Claro que ficaram amigos.

Antes de se formar, Marcelo trabalhava na secretaria de um colégio. A escola fez questão de contratá-lo como professor e ele, humildemente, de acumular as duas funções para reforçar o orçamento pois já havia um bebê para criar.

Anos mais tarde, quando Marcelo já completava dez anos de trabalho voluntário na "cadeia", mesmo já sendo formado, professor e pai, ele convidou um primo meu para ir à Penitenciária Lemos Brito. Outro dia eu conto essa história, mas basta dizer que aquele primo morreu no dia em que entrou lá e nasceu outro primo, acho que bem melhor.

Quando Marcelo pensou em se candidatar, inicialmente para vereador na sua cidade natal, em Niterói, outra demonstração de humildade: procurou os amigos mais próximos, como meu primo, e perguntou-lhes o que achavam. Um amigo comum manifestou o temor de que Marcelo, uma vez eleito, mudasse completamente. Enganou-se redondamente. São poucas as pessoas que conseguem enfrentar tantos desafios, crescer e ao mesmo tempo permanecer fiéis a si próprias.

Que desafios? A morte do irmão, barbaramente assassinado, fato que Marcelo jamais explorou politicamente. A necessidade de andar com seguranças 24h para não ser assassinado a mando das milícias que ele tanto se esforçou para denunciar, investigar, processar e prender. Lembremos que já houve prefeito do Rio de Janeiro (com nome de imperador romano rs) dizendo que as milícias faziam um trabalho importante.

E agora vem essa acusação covarde, distorcida, que pretende atribuir ao Marcelo a violência dos black blocs que ele sempre condenou, embora sem demonizar. Como presidente da Comissão de Direitos Humanos ele tem como dever atender a todos que solicitem, pois, para lembrar algo indispensável, todos são inocentes até prova em contrário.

Fico preocupado mas meu primo me tranquiliza. Com aquela calma determinação que o caracteriza, com a firmeza de quem tem a alma em paz, nosso amigo Marcelo vai tirar essa de letra. Afinal, Freixo é uma madeira tão resistente que com ela eram fabricados os arcos na Antiguidade. É madeira que verga, mas não quebra.

Guerra e paz

Guerra é assim que se faz
choramos só os nossos mortos
e ninguém tem paz

Guerra é assim que se faz
eles choram apenas os seus mortos
e ninguém tem paz

Guerra é assim que se faz
nossos assassinos são guerreiros
e ninguém tem paz

Guerra é assim que se faz
os guerreiros deles são assassinos
e ninguém tem paz

Guerra é assim que se faz
nisso nós e eles concordamos
e ninguém tem paz

Guerra é assim que se faz

O sétimo dia

No início era o tédio
e a falta de sentido
por isso os homens e as mulheres
criaram Deus

Deus pôs mãos à obra
e no primeiro dia
inventou o trabalho
o suor do rosto, aquelas coisas

No segundo dia
Deus mostrou o
cartão de visitas
e Cri-a-dor

A terra e suas montanhas
estava de pé
no terceiro dia
para termos onde pisar

Os mares e suas ondas
foram feitos por ele
num feliz
quarto dia

No dia seguinte,
já com pouco tempo
fez os animais
e os insetos

No sexto dia,
o último de trabalho
fez uma avaliação geral
uns consertos aqui e ali

No sétimo dia
como podia descansar
como não tinha obrigação
e podia balançar a rede no infinito

é que Deus ficou inspirado
a ponto de inventar
a música, a literatura, a arte
e os beijos apaixonados

Depois, satisfeito ou conformado
com sua obra terrena,
Deus partiu para sempre
para um destino ignorado

e deixou mulheres e homens abandonados à própria sorte

Projeto simples

É um projeto simples, que não será apresentado em 19 vias rubricadas à CAPES e ao CNPq mas apenas humildemente colocado sob a apreciação dos deuses olimpianos. Tornar-me:

Escritor de pena vadia e alegre
e professor nas horas Vargas 

Assino e boto fé,
Marcos Alvito, 7 de janeiro de 2014

De como Golbery do Couto e Silva roubou a namorada do meu primo

Para J.

Talvez alguns já conheçam a minha teoria dos primos. Funciona assim: todos nós vamos tendo primos ao longo da vida, à medida que nos modificamos. Uma bióloga me garantiu que de sete em sete anos todas as nossas células são trocadas. Este meu motor 5.3, por exemplo, já teve vários primos.

Primeiro um bebezão louro, quase cinco quilos, que mamava como se o mundo fosse se acabar amanhã. E ia mesmo, porque aos oito meses o pediatra vetou o leite da mamãe. Começava para ele a era da mamadeira. Outro primo foi uma criança feliz em Botafogo, cercada de outras crianças, como era comum antigamente. Depois a coisa começa a complicar. Veio um primo adolescente, tímido, retraído, refugiado no mundo da literatura. Um CDF incorrigível que tinha medo da pista de dança, das festas e principalmente das meninas. Talvez se achasse magro demais ou qualquer outra coisa a mais ou a menos, que a gente inventa quando quer fugir de si e dos outros.

Esse primo adolescente começou a "morrer" quando foi obrigado a servir ao Exército. Aos 18 anos a vida dele já estava toda planejada, iria ser correspondente do Jornal do Brasil em Londres. Só que não. De repente, viu que estar no mundo tinha suas exigências, suas obrigações inescapáveis. No quartel, conheceu gente de todos os bairros do Rio, eram 300 de todo o tipo. Fez dois grandes amigos e, sobretudo, tomou uma decisão inesperada. A inspiração lhe ocorreu quando se viu de botas, uniforme, capacete e fuzil olhando para a rua Figueira de Melo de onde viria um improvável inimigo. Para torturá-lo, do outro lado da rua um casal fazia amor em um terreno baldio. Era um sinal dos deuses. Assim que terminasse o serviço militar, iria pular carnaval, ou seja, iria começar a viver de verdade.

Começou devagarinho, viajando até Teresópolis para o seu primeiro baile de carnaval da idade adulta. Nos anos seguintes iria aumentar e muito a aposta: Salvador e Olinda, esta última com direito a bis. No baile de Terê, descobriu que ainda sabia se divertir. Foi aí que ele a viu e ela o viu também. J. era o nome dela. Era tão alta que isso devia intimidar a maioria dos rapazes, talvez tenha sido esta a sorte do meu primo. Olhos de um céu azul de verão, cabelo louro cacheado, rosto lindo e jeitinho simpático, J. era uma aparição e uma prova de que os deuses são bons. Ela riu muito quando, nos braços do meu primo, ele lhe disse que iria até a casa dela no dia seguinte.

Foi que foi. Sentada na varanda, J. tomou um susto. Amor de carnaval... quem diria. Começaram a namorar, claro. Meu primo, que estudava jornalismo, ia para Teresópolis todos os fins de semana e às 4as. feiras também. Ela era um amor, uma menina de 17 anos que ao fim do ano faria vestibular. Ele estava cada dia mais apaixonado, ela também. Havia algumas dificuldades, é claro. O pai dela era simplesmente o delegado da cidade. Com quase dois metros, corpulento, na juventude fora da Polícia Especial do Getúlio. Quer dizer, o namoro na varanda tinha que ser bastante cauteloso.

Mas tudo ia muito bem. Até que um dia estavam conversando e ele, metido a intelectual de esquerda, menciona o nome de Golbery do Couto e Silva. Se a ditadura militar já teve um cérebro, este foi o Golbery. Teria sido ele o arquiteto do processo de "distensão lenta e gradual" pelo qual o Brasil estava passando à época. Quer dizer, adivinhar o que o Golbery estava pensando era a ocupação preferida de muita gente. Ela, todavia, não tinha a menor ideia de quem era o Golbery. Ele ficou chocado. Como podia, a namorada dele não saber de algo tão importante.

Hoje quando eu lembro disso tenho vontade de dar umas palmadas naquele meu primo e roubar-lhe a namorada. Mas o fato é que ele terminou com ela por causa daquilo. Por causa do Golbery. Claro que não teve a hombridade e a dignidade de explicar. No último dia em que ficaram juntos, houve um festival de beijos e lágrimas. Mas ele continuou irredutível. Uma besta quadrada esse meu primo, fazer o que? Como diz minha mãe: Deus dá nozes a quem não tem dentes...

É possível pedir perdão 35 anos depois? Se for, J. me perdoa, vai?

A sereia da praia vermelha

A Praia Vermelha foi o palco de um episódio bastante sangrento: uma tentativa de levante comunista em 1935, que foi reprimido a ferro e fogo. Até hoje os militares celebram discretamente essa vitória contra o perigo vermelho. Mas é também uma praia linda, do tamanho certo para uma história de amor e é uma dessas que eu vou contar agora.

Fernanda largou tudo do outro lado do Atlântico, seu pai, sua família, sua Lisboa querida. Desiludida e desencantada com um falso amor, embarcou no navio mais próximo e cruzou o oceano. Chegou no mesmo barco que Carlos Lacerda, que voltava depois de ter sido praticamente escorraçado pelas multidões que choravam a morte de Getúlio. Lacerda foi recepcionado pela turma do Clube da Lanterna e Fernanda achou estranho aquele bando de homens segurando uma vela na mão. Mas em seguida viu da janela do táxi o Passeio Público e ficou fascinada com as árvores e a vegetação.

Fernanda veio trabalhar com a mãe, que já estava no Rio e tinha uma oficina de cortinas. Um dia, Fernanda e uma amiga costureira decidem ir a um baile da Associação Comercial, uma linda e grandiosa pista de dança que existe até hoje na Avenida Rio Branco.

Agora corta para Dario. Órfão de pai aos dez anos, Dario era baiano, mas fora criado no Rio a partir dos oito anos. A adolescência foi difícil, trabalhando de fiscal de vendas de dia e estudando à noite. Mas o baiano também se divertia: adorava batucar, assistir aos jogos do Flamengo na Gávea e de vez em quando pegava um jipe emprestado para sair com uma namorada. Conseguiu passar no difícil vestibular para Veterinária na Rural, onde trabalhava na Biblioteca. Vida dura, mas naquele dia ele estava no Rio e foi ao baile da Associação Comercial.

O moreno bonito partiu resoluto na direção da mesa onde estava Fernanda. Antes que ele chegasse, outro rapaz convida a amiga costureira para dançar. O moreno continuou vindo. Só que Fernanda teve a impressão de que ele estava querendo convidar a amiga e não ela. Ele juraria até o fim da vida que não, que só tinha olhos para ela.

Seja lá como for, o baiano gostou da mocinha portuguesa e vice-versa. Logo ele marcou umas aulas de natação para ela. Adivinhem aonde? Claro, na Praia Vermelha. Muitos anos depois ela se lembrava dessas aulas com um riso contido, confessando que nunca aprendeu a nadar, mas que o professor bem que a segurou de todas as formas possíveis. A sereia da Praia Vermelha gostou tanto do baiano que eles acabaram se casando.

Tiveram três filhos: Denise, Marcos e Maria Fernanda. Quando o coraçãozinho de Dario parou de bater, já abalado por um infarto, a decisão foi unânime. Lançamos suas cinzas nas ondas da Praia Vermelha. Porque ali, tínhamos certeza, ele havia sido feliz.

A cabrochinha do vestido azul

Ontem, Pindorama, a Seleção Brasileira de Escritores, novamente cruzou as fronteiras e foi jogar numa terra estrangeira, hostil e de costumes bizarros: a Barra da Tijuca.

Claro que perdemos de 5x3, felizes pela menor diferença de gols que já sofremos, agradecendo ao astro-rei abrasador por terminar a partida mais cedo.

Foi depois disso que o milagre se deu. Aproveitei que estava por ali e fui a um dos 1001 shoppings da região pegar um filminho. Mas não era qualquer shopping, era o mais luxuoso deles. Lá chegando, para a minha surpresa, descobri que todos os restaurantes ofereciam feijoada. Continuei cabreiro, mas caí do cavalo quando ouvi o som do pandeiro e do cavaquinho. Sim, ó ateus incrédulos, uma roda de samba na praça de alimentação. Agora é que os deuses entraram em campo. Vi hordas de madames, nuvens de peruas, em um passe de mágica encarnadas em cabrochas, se acabando naquele chão enceradinho que até que dá um caldo.

O show maior esteve a cabo de uma cabrochinha de dois anos, vestidinho azul, cabelinhos louros, que para a paixão total do pai e delírio da plateia misturava passos de balé, piruetas de criança e uns esboços de samba no pé.

Naquela hora eu lembrei do grande mestre Luiz Antonio Simas e do papel civilizacional do samba. Porque naquele momento, meus queridos e queridas, a Barra da Tijuca era reincorporada em grande estilo ao território carioca e os deuses me relembravam pela milésima vez que toda e qualquer barreira entre os homens é apenas imaginária.

Planos para o futuro

Poema de hoje # 003

Para mim a sala de aula é também e principalmente um lugar para brincar com palavras e ideias. Foi assim que respondendo a um aluno imaginário que me perguntava o que vinha depois do doutorado, respondi que depois do doutorado vinha a morte. E que no meu caso eu gostaria de assumir uma forma superior: servindo de adubo a um jardim, seria parte de uma rosa que uma morena (aqui simbolizando todas as mulheres) colocaria junto à orelha até que o vento levasse a flor para outras paragens. Por que não pensar na morte como uma fusão com o universo? Creio que Sophia de Mello Breyner Andresen consegue fazer isso, em um poema publicado na antologia Mar:

EM TODOS OS JARDINS

Em todos os jardins hei de florir
Em todos beberei a lua cheia
Quando no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
a tudo quanto existe hei-me de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Minha primeira paixão... ou por que odeio Ringo Starr

MINHA PRIMEIRA PAIXÃO... OU POR QUE ODEIO RINGO STARR 

(Marcos Alvito)

Foi um ano esquisito, no mínimo. Senão, vejamos. O ano de 1966 começou com a Ditadura Militar decretando o AI-3, abolindo as eleições diretas para governador e mandando para o espaço o pouquinho que restava de democracia. Com aquilo, os generais avisavam que tinham vindo para ficar, por muito tempo. o Bangu foi campeão em cima do Flamengo com uma acachapante vitória de três a zero em pleno Maracanã. E teria sido pior, não fosse a decisão (acertada) de Almir Pernambuquinho de sair na mão com todo mundo pra impedir uma goleada. O Rio teve uma das piores enchentes da sua história e olha que é uma competição bem dura essa. A seleção brasileira, de trapalhada em trapalhada, deu um enorme vexame na Copa da Inglaterra e foi logo eliminada. Sem falar na tristeza de assistir Pelé ser caçado em campo pelos portugueses.
A grande tragédia deste ano perigoso, não saiu nos jornais, como diz o samba. Ocorreu em um colégio do bairro de Botafogo onde, aos seis anos, eu estreava nas letras e no amor. Nas letras até que fui bem... Já no amor... Não lembro o nome dela, como eram seus cabelos, o tom de voz, a cor dos olhos. Mas tenho uma lembrança clara e precisa do sentimento de paixão que tomou conta de mim, era mais real e urgente do que o dever de casa. Lembro que a pedi em namoro. Não sei hoje o que isso significava. Andar de mãos dadas no recreio? Dividir um picolé na cantina? Ou tão simplesmente abrir um sorriso e dizer: sou teu namorado. Seja lá como for, ela topou. Ou melhor, quase. Estabeleceu apenas uma condição. Eu teria que ser parecido com o Ringo Starr. Já tinha ouvido falar no sujeito, mas sinceramente não tinha ideia de como ele era, menos ainda se eu parecia com ele. Não quero ser pedante, mas quando Shakespeare faz Hamlet se perguntar To be or not to be, com certeza ele estava pensando em situações como essa. Sem palavras, corri para casa investigar.
Como não havia Google, perguntei a mamãe. Não sem uma dose de malícia, porque escondi o motivo. Mamãe suspeitou de algo, deu um sorriso compreensivo mas fuzilou sem perdão:
- Nem um pouco, meu filho.
Preciso dizer que o meu beatle favorito sempre foi o George Harrison?

Viktoria

Viktoria

Sim, era verdade. Aquela nuvem de garotos falando Brasil sem parar com sotaque alemão estava atrás da gente. Ou seja, dos jogadores do Pindorama FC, a primeira seleção nacional de escritores do Brasil. Eu nunca havia assinado uma camisa de criança na vida. Muito menos uma chuteira ou um caderno com a programação literária do encontro entre escritores brasileiros e alemães na Feira de Frankfurt. Na capa, um jogador com a camisa nove da seleção canarinho parece comemorar. Eu me vi cercado por eles e assinei como se eu fosse o Neymar. Aliás, muitos deles falavam Neymar, Neymar como sinônimo do amor pelo futebol brasileiro. Também pediam sem parar que depois do jogo déssemos a camisa, a chuteira ou o calção. Algo nosso. Meus companheiros também foram cercados e alguns tiveram até dificuldade para conseguir adentrar o vestiário. Quando entraram, os guris vieram junto, incansáveis.
Estávamos em Sossenheim, um bairro proletário de Frankfurt, definido por um sociólogo alemão como o último reduto da ArbeitKlasse, ou seja, da classe operária. Havia meninos louros, mas também negros e outros que pareciam árabes. Todos estavam a mil por hora. Mesmo na hora do aquecimento alguns deles invadiram o campo e quando um chute mais forte lançou a bola para fora a chusma de calças curtas partiu em massa para ter a honra de devolver a pelota. O campo, impecável como o campo de treinamento do dia anterior, era de grama artificial e dimensões oficiais, para um onze contra onze, quarenta e cinco minutos cada tempo.
Na verdade, o jogo fazia parte de um encontro mais amplo entre escritores alemães e brasileiros durante a Buchmesse (Feira de Frankfurt), a feira literária mais importante do mundo. Ela existe há mais de 500 anos. Aproveitando o fato do Brasil ser o país homenageado de 2013, o Instituto Goethe teve a ideia de realizar este jogo. As primeiras seleções de escritores surgiram na Itália e na Hungria em 2005, e também na Suécia, que durante algum tempo reinou absoluta. Dois anos depois, em 2007, surgiu o Autonama, a seleção alemã de escritores. Atualmente, são campeões europeus.
O Pindorama foi montado às pressas, com uma espécie de Rio-São Paulo mais um escritor do Paraná. Fizemos dois treinos leves em São Paulo, em campos menores, para cinco ou seis na linha. Deu para cada um saber o nome do outro e improvisar uma escalação. Entre nós, havia escritores de ficção dos mais diversos gêneros, do romance à literatura fantástica passando pela literatura infantil, professores de literatura, jornalistas que escrevem sobre futebol, um livreiro e até mesmo um antropólogo historiador que só é bom mesmo no futebol de mesa. O grupo se deu bem, pelo menos fora de campo. Nossos encontros foram alegres e bem humorados, um bando de homens, alguns já com motor 5.0, transformados em meninos novamente. Bethe e Stefanie foram nossas cartolas, duas maravilhosas profissionais do Instituto Goethe da capital paulista. Às vezes pareciam até mais animadas com a empreitada do que a gente.
Embarcamos em São Paulo para um vôo de quase doze horas até Frankfurt am Main. Ou seja, Frankfurt sobre o rio Main. A cidade é sobretudo o centro financeiro do país mais poderoso da Europa. Lá foi criada a primeira bolsa de valores do mundo, ainda no século XVI. Também é chamada de Mainhattan por conta dos lindos arranha-céus que marcam o centro da cidade. Além da Buchmesse, é lá também que fica a sede da Deutsche Fussball xxxx, a Federação Alemã de Futebol. Praticamente ao lado, ficamos nós no Lindner, um hotel temático, obviamente dedicado aos esportes. A impressão que eu tive é que estávamos praticamente dentro de uma floresta, embora a estação de trem mais próxima ficasse a cinco minutos a pé. Fomos distribuídos dois a dois pelos quartos, exatamente como uma delegação de futebol. Piadinhas mil, é claro. Um bando de garotos.
No primeiro dia estavamos zonzos de jetlag e falta de sono pois praticamente ninguém conseguiu dormir no vôo. Mesmo assim, ficamos felizes em ir para o primeiro treinamento, junto com a seleção alemã. Junto é maneira de dizer, pois o campo foi dividido em duas partes e cada time fez o que quis. Os alemães deram uma aula de sentido coletivo: todos correram, alongaram e se movimentaram juntos. Enquanto isso, o escrete verde amarelo se dividia, uns corriam com a bola, outros sem, outros ainda preferiam não correr e tocavam bola entre eles. Fizemos um treino animado, um rachão e as vozes discordantes que falavam em treinamento tático ou jogadas ensaiadas foram ignoradas. O peladão terminou 6 a 3 e até eu fiz gol. Mau sinal, pensei.
O bacana é que o campo de treinamento pertence ao Eintracht Frankfurt, a principal equipe da cidade e que joga na Bundesliga, na primeira divisão profissional da Alemanha. As cores rubro-negras de todo o CT fizeram eu me sentir em casa. Não tão bacana foi o fato de percebermos que o time alemão era pelo menos dez anos mais jovem do que o nosso em média. E o mais chocante e assustador: ninguém ostentava nem uma barriguinha. É também um milagre, porque naquela noite eles nos levaram para um restaurante de comida típica da região. E o cardápio era bem, mas bem pesado: já viram carne de porco à milanesa com batatas O tamanho do copo de cerveja tornava inexplicável a inexistência de pançudos entre eles.
Fomos dormir, finalmente, sonhando com a vitória. Todos acreditávamos no toque de bola, na malícia, na ginga do futebol brasileiro. Reconhecíamos que o time alemão seria uma parada dura e que nós eramos a zebra. Mesmo assim, logo havia quem falasse na caixinha de surpresas ou em uma intuição muito forte. Pois bem. Depois de comer duas linguiças e muitas outras delícias no café. Chamei meu companheiro de quarto e partimos para o centro de trem. Coisa de dez minutos.
Passeamos muito, mas o que mais nos surpreendeu foi uma feira livre, daquelas que existem no Brasil, quer dizer, mais ou menos. Essa era silenciosa e impecavelmente limpa. Só vimos uma barraca de legumes, o resto era comida “leve”: carnes, linguiças, queijos... Como havíamos acabado de tomar café, conseguimos resistir, mas foi difícil. Andamos bastante pela ampla rua principal, muito animada. Acabei por descobrir uma maravilha gastronômica inesperada, uma espécie de palmier semi-coberto com chocolate. Eu sempre adorei palmier mas confesso que nunca pensei que ele pudesse ser melhorado. Vivendo e aprendendo. Com aquela delícia no bolso, fomos procurar um café. Achamos um bem legal, numa rua transversal, mais calma. Já íamos sentando nas lindas cadeiras de palhinha pintadas de preto quando a moça do café nos trouxe almofadas para sentarmos. A gentileza não parou aí: nos deu também um cobertor para cada um colocar sobre as pernas. Estava frio, menos de dez graus, mas soube que para os alemães isto não é frio. A fraulein, além de gentil, era absolutamente encantadora. Meu amigo, ainda mais entusiasmado do que eu, perguntou seu nome. Com um sorriso meio envergonhado, ela disse em voz baixa: Viktoria.
Foi o que bastou. Meu amigo e eu passamos logo a interpretar aquela breve resposta como um sinal dos deuses, uma predestinação histórica encarnada em uma linda mulher. A vitória, ou melhor, a Viktoria, havia sorrido para nós. Saímos de lá eufóricos, pensando em retornar no dia seguinte com a coroa de louros e as boas novas para nossa musa-profetisa. Quem iria pedi-la em casamento ainda não estava combinado. Isso era coisa a debater depois. Agora tínhamos que voltar ao hotel de onde partiria o nosso ônibus. Compartilhamos o veículo com a seleção alemã. O capitão deles, um baixinho com cabelos louros e encaracolados, parecia demais com o Valderrama. Mas ao contrário do jogador colombiano era um sujeito muito simpático, sempre sorridente e gentil conosco.
No ônibus, achei por bem contar toda a história aos craques do Pindorama. Todos adoraram, embora nosso lateral-esquerdo Antonio Prata tenha sussurrado uma coisa ao meu ouvido. O que foi contarei depois. Depois foi aquele carnaval. Teve musiquinha falando que a gente ia botar pra quebrar, muita piada, enfim, alegria geral. Pegamos um pouquinho de engarrafamento, mas não demoramos mais do que meia hora para chegar ao Sossenheim. Foi aí que a garotada nos cercou como se fóssemos a seleção brasileira.
No vestiário cada um de nós recebeu a amarelinha. Uns, como eu, não acreditavam. Outros viravam crianças grandes, grisalhas e meio barrigudinhas. Entramos em campo de mãos dadas com o time de crianças da localidade, absolutamente emocionados (nós, as crianças não). Eu juro que ouvi o locutor dizer em alemão: Drei (3), Marcos Alvito. Juro também que houve até um início de vaia. Para o time alemão, vejam só. As duas equipes se postaram lado a lado para ouvir os hinos nacionais. Pelo menos fomos a única seleção brasileira que cantou o hino nacional de cabo a rabo. Ou melhor, o rabo ficou de fora porque só tocaram metade do nosso hino. Lá fora, muitos garotos ainda gritando, Brasil, Brasil.
Havia três juízes de azul e preto. Eram bem jovens e pareciam ter um metro e noventa cada um. E locutor oficial, como já disse. Em torno do alambrado talvez uma centena de pessoas, incluindo os moleques. O nosso time teve a honra de dar a saída. Foi bom isso, porque talvez tenha sido a única hora em que pudemos tocar a bola com tranquilidade. O time alemão começou o jogo bem fechado, aparentemente nos estudando. Eles marcavam muito e pareciam a Hidra de Lerna, quando um era driblado aparecia logo outro na cobertura. Só há uma palavra para resumir a nossa atuação no primeiro tempo: desastre. Até que o gol deles demorou um pouco a sair, mais ou menos uns dez minutos. Mas depois foi uma enxurrada: cinco a zero somente na primeira etapa. Eles eram sobretudo muito bem entrosados e velozes. Triangulações terminavam em cruzamentos para cabeçadas ou em uma bola recuada para alguém que vinha de trás, já batendo. O locutor, que começara todo respeitoso conosco começou a colocar musiquinha depois de cada gol e a anunciar o placar, Deustchland ein, zwei, drei e terminando com voz irônica, Brasil, zero.
Tudo bem, pelo menos o time alemão foi extremamente correto, não brincou em campo e acho até que nem comemoraram direito. Vai ver que para eles era só um treino. O segundo tempo era uma tragédia anunciada. E ela aconteceu. Eles meteram mais quatro azeitonas no nosso gol. Deixa eu ajudar vocês a fazerem as contas: cinco mais quatro igual a nove. Nove a zero? Não, isso não. Nosso melhor jogador, número 4 Rogério Pereira, cavou um pênalti que o juiz altão teve a bondade (ou a misericórdia) de marcar. Nosso capitão bateu com categoria deslocando o goleiro e fez um gol solitário e mirrado como uma folha de outono caída da árvore.
Lembram-se do sussurro do Antonio Prata, nosso valente lateral-esquerdo? Pois bem, o sábio Pratinha, como gosto de chamá-lo, abriu aquele sorriso de homem bom e me disse:

- Alvito, talvez haja outra interpretação possível para o episódio. Talvez ele queira dizer que a Viktoria é alemã.

P.S: Ainda bem que amanhã o jogo será literário, com autores brasileiros e alemães lendo seus textos sobre a importância da bola em suas vidas. E eu ainda não contei o mais legal. Na saída do primeiro tempo, havia um bolo de garotos, agora gritando Deutschland a plenos pulmões. Exceto um, totalmente cercado por seus amigos, que insistia, Brasil, Brasil... Talvez esse se torne um escritor, pois entre a dura realidade e o sonho ele nem titubeia: é sonho futebol clube.

Jantando com o inimigo

Jantando com o inimigo

Era ele mesmo. Um dia depois da acachapante goleada, alguns pindoramas jantavam tranquilamente no hotel quando o avistei. A farta cabeleira, o nariz adunco e a expressão viva e inteligente não permitiam dúvidas. Ali estava Moritz Rinke, o camisa nove da seleção alemã de escritores. Aquele que fizera seis gols na gente. Em chutes de longe, escorando triangulações ou subindo no terceiro andar para testar com categoria. O sujeito que tornara a minha vida de beque central um inferno, tendo que correr sem parar, na quixotesca esperança de impedir suas jogadas. Mas também um adversário absolutamente leal. Dentro de campo, onde dispensou empurrões, cotoveladas ou faltas. Ou fora dele, quando afirmou ao repórter da Folha que o resultado se devia ao fato da nossa seleção ter acabado de ser montada.

De qualquer forma, era ele ali, jantando sozinho e silencioso na mesa ao lado. Levantei-me, fui na sua direção e o convidei para jantar conosco. Primeiro ele deu uma pequena e educada desculpa, mas eu insisti. Moritz Rinke, dramaturgo premiado, autor de um bestseller que vendeu 200 mil exemplares e atacante "imarcável", juntou-se finalmente a nós. De início, estava tímido. Eu agradeci a ele pela postura da seleção alemã, que nos respeitou mesmo depois da goleada. Sempre gentil, o camisa 9 germânico disse que já haviam ganho da Áustria de 12x0 e que no caso da Turquia, por exemplo, o primeiro jogo foi uma goleada do Autonama, mas a revanche foi um duríssimo zero a zero que teve que ir para os pênaltis. Lembrou o caso da Argentina, que ganhou deles por um a zero. Embora, na opinião de Rinke, tenha sido um empate, mas os argentinos não aceitaram o gol da Alemanha, alegando impedimento.

Ao se soltar, ficou encantado com a presença de Pepe, o grande ponta-esquerda do Santos, companheiro e padrinho de Pelé, que beija a mão de Pepe e pede benção ao seu padrinho toda a vez que o vê. Rinke pediu para tirar uma foto de Pepe e eu sugeri que tirasse uma foto com o nosso técnico. Pepe até brincou:

- Esse desgraçado faz seis gols no meu time e agora quer tirar foto?

O artilheiro parecia uma criança de tão feliz. Contou que já vivera no Brasil, onde ficara amigo de Ignácio de Loyola Brandão, a quem ele considera o responsável por ele ter seguido o caminho da literatura. Chegou a jogar em um time semiprofissional e em uma partida conseguiu fazer oito gols. Respirei aliviado, pelo menos ele não batera o recorde pessoal contra nós.

Nossso ex-tormento agora esbanjava simpatia. Humilde, pediu a cada um de nós que colocasse o email debaixo do texto publicado no folheto com os textos dos autores do Autonama e do Pindorama. Na mesa ele parecia estar em meio de amigos: Vladir Lemos, André Argolo, José Luiz Tahan o trataram com toda a fidalguia. Brinquei com ele dizendo que além do email iria colocar uma dica que lembrasse a ele quem eu era. "Marcos Alvito - péssimo defensor". Combinamos entrar em contato quando eles forem jogar a revanche no Brasil. Se for no Rio, ficarei feliz em mostrar alguma coisa da cidade para eles.

Mas ali não havia mais defesa ou ataque, eramos apenas meninos-homens conversando sobre o nosso brinquedo preferido e sua capacidade mágica de nos irmanar.

Este texto é dedicado ao Autonama e ao seu craque maior, Moritz Rinke

Da importância de nada saber

A única coisa que aprendi depois de 30 anos de magistério: é importante que o professor não saiba de nada. Assim, ele fica eternamente em dúvida. Continua lendo, pesquisando, investigando, na vã intenção de um dia aprender alguma coisa. E como ele não sabe de nada, ficará feliz em ouvir seus alunos e quem sabe tentar, junto com eles, aprender algo que valha à pena.

Quanto aos especialistas, que sabem tudo, ocorre o inverso: estão bastante dispostos a falar tudo que sabem, mas não têm muita paciência para ouvir aqueles que, à olho nu, percebe-se que são apenas leigos. Professor que fica querendo ensinar aos outros é um perigo (além de ser maçante). Ai daqueles que não quiserem aprender. Ou dos hereges que ousarem discordar de Vossa Excelência...

Mas que alegria fazer uma descoberta conjunta e, como dizem esses meninos e meninas de hoje: compartilhar e curtir 

P.S: Perdoem a minha ignorância, é que afora A Educação como Prática da Liberdade, de Paulo Freire, que para mim é filosofia, nunca li um livro de Pedagogia na vida.