Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Prefiro não fazê-lo

Filho de baiano, nascido em terras cariocas, sou um sujeito muito preguiçoso. Odeio produzir. Gosto de dialogar, gosto de pensar algo e de estimular a reflexão de um grupo. Quase sempre aprendo mais do que ensino. É o que eu chamo de aula. Aula não se produz, aula se constrói. Aula é que nem o amor, quanto mais se divide, mais se multiplica. 

Também não gosto de produzir artigos ou livros. Gosto de elaborá-los lentamente, à medida em que a pesquisa e a reflexão vão seguindo seus caminhos misteriosos e aventureiros. O que eu tenho é pouco, como diria Paulo Vanzolini, mas é meu e vai comigo. Parece óbvio, mas só publico um livro ou artigo se acho que tenho algo a dizer e algo que talvez possa interessar a alguém. Não se devem cortar árvores à toa. O que posso dizer é que curti cada linha que escrevi.

Como bom preguiçoso, odeio prazos, desprezo linhas de montagem. Dois anos para que um aluno faça matérias de pós-graduação, desenvolva a sua pesquisa, escreva uma dissertação e se apresente diante de uma banca é uma crueldade. E na maior das vezes, uma mentira. Poucos, como era de se esperar, conseguem fazê-lo com um mínimo de qualidade. Aí entra em cena o "pacto produtivista": você aprova meu aluno que eu aprovo o seu. Qual foi a última vez em que vocês ouviram falar de alguém ser reprovado no mestrado ou doutorado?

Todo mundo virou gado tangido à ponta do chicote CAPES-CNPq. Em nome do status de pesquisador e dos minguados caraminguás da bolsa de produtividade, tudo o que importa é cumprir os prazos, desovar (termo nativo) as dissertações e teses, produzir os artigos e os livros. Os colegas que não forem "capazes" de seguir esta norma são sumariamente expulsos como se fossem leprosos na Idade Média.

Antes as relações entre alunos e professores poderiam ser caracterizadas como um kula do conhecimento, um círculo de trocas que nunca se fechava e continuava por décadas: no próprio kula há objetos que só retornam após 10 anos. Agora todo esse ecossistema intelectual está sendo destruído. Agora o que impera é a troca mercantil, interessada e desinteressante.

É claro que há muitas exceções, mas estou descrevendo o sistema e seu funcionamento. O subproduto humano dessa catástrofe produtivista é a doença nas mais variadas formas: esgotamento físico e mental, doenças nervosas e um empobrecimento das trocas humanas em geral.

O que fazer diante disto tudo? Sou um modesto professor e ainda mais humilde pesquisador. Só me resta tirar meu time de campo. Minha última orientanda defendeu sua dissertação no final de março de 2014. Agora vou me dedicar a esta atividade vil e ignominiosa, chamada recentemente por um colega do meu departamento de "vala comum": dar aulas na graduação. Ainda bem que não é considerada atividade produtiva pelos burocratas, gosto dela assim, uma mera relação entre seres humanos.

Um velho malandro chamado Aristóteles já dizia que dividimos certas tarefas com os animais, produzir nossos meios de subsistência é uma delas. Só é ser humano, e nisto os sambistas, os jongueiros e o velho filósofo concordam, quem cria, quem inventa. Para mim o espaço da sala de aula é ainda o espaço da possível liberdade. Ali eu consigo ser feliz, porque me sinto humano entre humanos. Pós-graduação, neste sentido, nestas condições, é escravidão individual e coletiva.

Sendo assim, quando me perguntarem: você não está na pós-graduação? Você não orienta? Ou até: você não produz? Lembrarei da linda novela de Herman Melville, Bartleby. Nela o protagonista que dá nome ao livro responde a perguntas desta natureza sempre da mesma forma: "prefiro não fazê-lo".

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