Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Mais vale um samba na avenida

Era uma vez um professor do Departamento de História da UFF chamado Marcos ... Waldemar de Freitas Reis.

Marcos Waldemar, como era chamado, era de longe o professor mais velho da casa quando meu primo ingressou na instituição, ainda como estudante. De certa forma, eram dois extremos, opostos. Meu primo era disciplinado, metódico, rigoroso, ascético. Estudava muito e amava os gregos antigos, era um bicho de biblioteca, garoto tímido, só se soltava na sala de aula ou no futebol.

Waldemar era boêmio, alegre, divertido, sempre contando uma piada na mesa do bar, cercado de alunos e alunas. Era um mulherengo assumido, adorava contar a história da prostituta grega absolvida pelos juízes diante da sua beleza. Mas não tratava de Grécia, dava aulas de História Regional, sua especialidade era a História do Rio de Janeiro. Adorava levar seus alunos, e também os alunos dos outros, quem quisesse ir, a excursões para fora do Rio, sobretudo para Ouro Preto. Para quem se interessasse, dava explicações históricas. Mas deixava a turma livre para namorar, beber e passear à vontade. Carinhosamente chamavamos aquelas excursões de MarcosTour.

Certa vez, numa das raras vezes em que meu priminho estudante sentou à mesa do bar, Waldemar explicava para uma atenta plateia de admiradores e admiradoras que não se importava de não ter jamais defendido uma tese de doutorado. É que ele era da ala de compositores de uma escola de Niterói, com o sugestivo nome de Combinados do Amor. E pontificou:

- Mais vale ver um samba meu cantado na avenida...

Meu primo, inexperiente e preconceituoso, torceu o nariz. Mal sabia ele que muitos anos depois iria lembrar do grande Marcos Waldemar, um sábio disfarçado de gaiato, que sabia que a vida é sempre maior do que qualquer coisa.


terça-feira, 24 de junho de 2014

O quadrado mágico

Na Copa de 2006 a imprensa brasileira ganhou um factóide de primeira categoria: o quadrado mágico. Era composto por nada mais nada menos que os dois Ronaldos (o gordo e o gaúcho), Kaká e Adriano. Esqueceram de combinar a mágica com Zidane, que deu um show novamente e eliminou o Brasil com sua bola bem redonda.

O meu quadrado mágico é outro, bem mais modesto, embora de fato capaz de operar maravilhas. A sala de aula, mesmo daquelas caidinhas, com carteiras desconfortáveis e nada além de quadro negro e giz, é um quadrado mágico. Porque dentro tem gente. E gente é capaz de quase tudo. 

O professor é o de menos. O importante é a sala de aula ser como a vida: vibrante, som, luz e movimento, sempre, seguindo o velho malandro carioca, nascido no bairro de Éfeso, o tal de Heráclito. A aula não é o que o professor diz e sim o que os alunos entendem. Fazer um círculo, para que todos possam se olhar, para que não haja centro. Para que todos se sintam responsáveis e importantes. O conhecimento não emana de lugar algum, ele é construído coletivamente. 

Claro que existem alguma jogadas-chave. A aula, como um jogo de futebol, deve ser cheia de embates, de disputas pela bola, ou seja, de questões. Até a fala do professor, e aqui cabe soltar a bola o mais rápido possível, deve ser entremeada de perguntas. Elas permitem aos alunos descansar um pouco e concentrarem a atenção no que é importante. É como ajeitar uma bola para bater uma falta perigosa, com todo o estádio em suspense. A parada proporcionada pela pergunta é estratégica. E as perguntas pontuam o que é mais relevante no texto.

A bola deve circular ao máximo. Os alunos devem ser estimulados a participar de uma maneira ou de outra: respondendo às perguntas, fazendo perguntas, lendo trechos do texto, quanto mais gente tocar na bola melhor. Deve-se a todo custo evitar a aula expositiva, sobretudo para resumir um texto que os alunos já leram. O papel do professor não é mais fornecer a informação e sim ensinar a lidar com ela. Tem que mostrar como se lê um texto: identificando os objetivos do autor, os conceitos teóricos que utiliza e por último as palavras-chave. O debate deve dar-se em torno das palavras-chave. Os alunos podem fazer tabelinhas em duplas ou grupos de três, indo ao quadro para colocar as palavras-chave. Feito um bom camisa 8, cabe ao professor distribuir a bola, organizar o time, pensar as jogadas.

Sempre que possível, é necessário abrir a porta do laboratório e lidar diretamente com as fontes primárias, os materiais a partir dos quais os historiadores constroem suas teorias (claro que não é tão simples assim). Documentos de todo tipo: um discurso de Getúlio no Primeiro de Maio, o texto do AI-5, uma charge do Henfil sobre as Diretas-Já. E muitas, muitas fontes literárias, pois não somente são ricas como documento histórico mas proporcionam um exercício de sensibilidade histórica, treinam a capacidade de interpretação. Às vezes só a literatura dá conta de um tema. Falar sobre tortura é uma abstração, mas ler um relato ficcionalizado de quem foi torturado é uma experiência existencial.

De todas as jogadas de efeito, a música é a mais efetiva, ao menos nas aulas de História. Mas não é uma mera "ilustração". A música é um documento histórico e tudo nela pode ser interpretado, o ritmo, os instrumentos utilizados, a melodia, . E a letra também, é claro. A música, quando se usa a versão original, tem uma capacidade de nos transportar no tempo, de nos colocar diante de outra sensibilidade. Batuque na cozinha cantado malemolentemente por João da Baiana, em um ritmo que expressa a malandragem e seus artifícios, sua lentidão estratégica diante de uma modernidade que era imposta a ferro e fogo. Ou o início de Fim de semana no parque, dos Racionais MCs, recriando o clima de terror vivido nas periferias.

Enfim, assim como o futebol, a sala de aula é uma caixinha de surpresas. Desde que o assim chamado professor esteja disposto a ser surpreendido e a aprender mais do que a ensinar. O papel dele é passar bem a bola.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Meu primeiro samba de amor

A cabrocha surgira do nada, como se enviada pelos deuses. Meu primo jura que não queria mais nada além de ver a Velha Guarda da Mangueira, a sua escola de coração. Mas se o seu coração for consultado... Quando notou, ela estava ali, sambando ao seu lado. Depois foi o Paraíso na terra: samba, amor e literatura, pois a cabrocha era letrada, gostava de Balzac e de Cartola, de Machado de Assis e Nelson Cavaquinho. Mas nós somos comedores de pão. Os deuses sorriem e logo depois dão gargalhada da nossa condição.

Ele começou a sentir um descompasso. Ela não dizia nada, mas seus olhos diziam. Um dia, voltando sozinho pra casa, caminhando debaixo de uma chuvinha fina que machucava mais a alma do que o corpo, fez a primeira parte:

Hoje, meu samba
tem nuvem de chuva
lambendo a minha dor

Como não sabia o que estava acontecendo nem o que fazer, continuou:

Hoje, meu samba
caminha me mostrando
aonde é que vou

E parou por aí. Ficava cantarolando o samba, ouvindo ele na cabeça e pensando como terminar. Mas não vinha mais nada, nadinha.

Até que veio o dia tenebroso. Foi depois de uma roda de samba. Vieram para a casa do meu primo. Ela, calada. Dormiram em silêncio. Ao amanhecer, o corte. Seco. Não havia o que discutir. Ela saiu pela porta do chatô, meu primo em estado de choque. Mas assim que a porta fechou, como se fosse um milagre veio o final do samba, quem sabe um novo presente dos deuses:

Meu samba,
hoje é feito de tristeza
Mas ele tem a nobreza
de viver um grande amor

Meu samba é para ti
minha querida
uma flor na despedida
daquele que te amou

Pois é. Uma amiga que está em Paris viu num muro assim: "O Amor está morto". Caminhou mais um pouquinho e na mesma rua, em outro muro: "Viva o Amor".

Por isso, preferi chamar o meu primeiro samba de amor de "Nobreza".

Pra quem quiser ouvir esse boi-com-abóbora, tá aqui: Nobreza














domingo, 22 de junho de 2014

Brinquedo de menina

Ao contrário de muitos pais, fico chateado por ninguém dar bola para a minha filha. É uma menina linda, saudável. E o único a jamais ter dado uma bola a ela em sete aniversários fui eu. Várias, aliás: de borracha, bem pequenas, bem grandes e até uma imitando couro e de tamanho oficial. Se nasce um menino é um festival de camisas de clube e o moleque já nasce cercado de bolas pra todo lado. Mesmo em ambientes intelectualizados, pretensamente livres de preconceitos de gênero: quem é que dá uma bola de futebol a uma menina de presente?

Pois fiquem sabendo que elas gostam muito. Tive a alegria de ter duas meninas aqui em casa por alguns dias: minha filha e sua prima, da mesma idade. De brincadeira, como deve ser, propus treiná-las no campo existente no condomínio. Como conduzir a bola, passe, chute. Coisas simples. Mais que um menino da idade delas já fez zilhões de vezes. No colégio bicho-grilo (no bom sentido) em que minha filha estuda, se dependesse dos meninos ela jamais jogaria bola no recreio. Ela e as amigas têm que pedir ao inspetor. E é claro que sofrem aquela pressão ancestral dos meninos, repetindo a frase idiota: "futebol é coisa pra homem".

Não é não. Em cinco dias de treino elas já estão passando direitinho e os chutes saem cada vez mais fortes. Pedi que chutassem com raiva, pensando nos meninos que acreditam que elas nunca vão jogar bem. Passaram a exigir duas sessões de treinamento por dia. Já começaram até a bater na orelha da bola, dando efeito. E tudo com uma alegria que parecia reprimida, guardada. Agora os olhos brilham vendo os jogos da Copa, prestando atenção na maneira com que os jogadores batem na bola. Pois a bola pode e deve ser brinquedo de menina.

Além de tentar privar metade da humanidade das delícias do futebol, há o reforço dos papéis de gênero e da ideia de que meninas são frágeis e meninos fortes, ou seja, um horror. Portanto, vamos dar bola para nossas filhas e para as filhas dos outros também. No bom sentido, pessoal, no bom sentido.

A recompensa

Era um primo muito estranho. Nunca chegava atrasado ao trabalho. Nem um minuto. Faltar havia faltado, algumas poucas vezes. Para casar no dia seguinte. Para ir ao funeral da avó. Quando a dengue quase o matou ou em um dia em que sua garganta era um mar de pus. Mas ninguém é de ferro. Ninguém é super-homem (ou super-mulher). E depois de vinte e sete anos, meu primo ficou doente pra valer. Teve que pedir uma licença-médica. Chorou de desespero no dia em que deveria estar em sala de aula, no início do que seria o seu 55o. semestre como professor naquela universidade. E era um curso sobre samba.

Ele nada podia fazer. Apenas seguir as instruções médicas. Tomar o remédio e esperar. Melhorou. Mas ainda não tinha forças e condição de retornar. Começou a caminhar na praia. Primeiro muito lentamente. Robustos e sarados senhores de 80 anos passavam por ele como se fossem carros de Fórmula Um. Mas lembrava do pai dizendo, com um sorriso de alegria:

- Não está morto quem caminha

A cada dia, caminhava mais. Voltou à academia. Foi novamente examinado pelo serviço médico da universidade. O doutor percebeu que ele melhorara e lhe deu somente mais um mês de licença. Ele achou otimista demais. De qualquer forma, aceitou.

Ia se aproximando o semestre seguinte. No dia aprazado, apresentou-se ao chefe do seu departamento. Avisou que estava de volta ao trabalho. Morando longe da universidade, tendo que utilizar três transportes para ir e mais três para voltar, estava um pouco temeroso. Sem dar detalhes, explicou a situação e fez um pequeno pedido, o primeiro em quase três décadas. Gostaria de voltar aos poucos, lecionando apenas uma disciplina, antes de lecionar as duas disciplinas habituais no semestre seguinte. Sem titubear, seu colega negou esta possibilidade de forma seca e direta:

- Todos têm seus problemas

Ele não retrucou. Na verdade, lamentou ter pedido, ter se colocado naquela posição.

Voltou à sala de aula para dar os dois cursos que lhe atribuíram naquele semestre. Ali, descobriu que a doença não lhe havia tirado nenhum pedaço. Que diante dos seus alunos continuava inteiro. Na sala de aula era um peixe dentro d'água, nadando feliz. Essa era a sua recompensa, sempre fora e continuaria sendo. Não precisava pedir nada a ninguém.

A cultura tem que ir aonde o povo está… na Internet

Nos últimos anos, tenho acompanhado direta ou indiretamente, como palestrante, mediador ou plateia, uma série de projetos culturais. Numa saudável democratização, hoje eles alcançam os quatro cantos do país e são realizados não somente em auditórios luxuosos, mas também em centros culturais de favelas e bairros da periferia. Maravilha. Outra característica:  são projetos profissionais, com financiamento público e privado, pagamento digno aos palestrantes e contratação de técnicos especializados. Microfones, filmadoras, material de divulgação, tudo de primeira qualidade. Uma beleza. Costuma até ter camarim com lanchinho.

Seria uma perfeição se não fosse um pequeno detalhe: quase ninguém vai assistir. Quando vai, é uma turma de adolescentes arrebanhados em cima da hora, que caem de pára-quedas sem saber bem o que estão fazendo ali. E nem mesmo adianta chamar celebridades. Vi uma famosa cantora de axé falar (muito bem) diante de uma audiência de 20 pessoas, em Salvador! Claro que sempre vale, nossa alma não é pequena. Mas, sinceramente, não é justo gastar tanto dinheiro para isso. Há milhares e milhares de pessoas interessadas no tema daquele debate ou daquela palestra. Mas não estão ali. Os jovens, sobretudo, estão na rede, no Twitter, no Facebook, no Youtube… E nas escolas, onde seus professores poderiam dispor desses ricos materiais em suas aulas.

Aí vem a principal falha de todos estes projetos, pelo menos de todos que conheci. A filmagem é realizada do início ao fim, nos mínimos detalhes. Mas não há transmissão simultânea, coisa que pode ser feita com um simples celular e um programa gratuito (Twitcaster). Ninguém prepara um simples podcast (programa de rádio gravado) com os melhores momentos das falas. Não são feitos pequenos filmes para colocar no Youtube, o que qualquer adolescente sabe fazer. Anos depois, o material completo do evento ainda não se encontra nos sites oficiais. Os palestrantes se sentem frustrados. Felizes por participar de um projeto desta natureza, mas tristes diante de uma oportunidade tão rica que está sendo desperdiçada. Se o projeto é feito, mesmo que parcialmente, com dinheiro público, tem como obrigação estar disponível ao público.

Já está na hora dos projetos culturais desembarcarem no século XXI. Hoje não custa nem mais um centavo para a cultura ir aonde o povo está: na Internet.

sábado, 21 de junho de 2014

O valor da guerra

Em um ato de deliberada desobediência civil acadêmica, não frequento mais a Plataforma Lattes, a senzala eletrônica dos pesquisadores brasileiros. Há dois anos ouso escrever, publicar e até ir ao cinema sem bater cabeça para a vigilância do CNPq-Casa Grande.

Como sabem, prefiro não fazê-lo.

Essa é a primeira etapa.

A segunda, após a minha abolição pessoal, se os deuses forem bons, será simplesmente apagar todos os meus vestígios junto à burocracia produtivista.

Sem lenço, sem documento e sem currículo Lattes.

Vou viver a vida que resta, agradecendo aos deuses por tudo e torcendo para que continuem bons.

Uma declaração de guerra? Claro que sim. É uma guerra necessária.

Éfeso, que ficava na Zona Norte da Grécia antiga, produziu um malandro carioca da mais fina estirpe, um tal de Heráclito. O pai do gingado dialético já mandava essa letra no seu estilo incomparável:

"A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres."

Ou ninguém ou todo mundo

      A história aconteceu ainda no selvagem século XX, desprovido do políticamente correto. Aluno com dificuldade de aprender era burro e outras variações do humano atendiam pelos nomes de surdo, cego, mudo e, a mais dura delas, retardado mental, ou apenas retardado, para os íntimos.

      Corta para o prédio de classe média de Botafogo onde meu priminho passou sua infância. Ali havia um menino gordinho, ruim na corrida, péssimo no futebol e meio bobão. Todo mundo sabia disso e é lógico que era alvo de muitas brincadeiras, ninguém tinha pena dele não. Mas os meninos mais velhos, inclusive meu primo, também não deixavam ninguém bater nele ou fazer maldades. Da mesma forma que não deixavam isso acontecer com outros meninos menores. Era uma turma bacana.

      Muitos anos depois, meu primo reencontrou o tal menino, agora um homem, mas ainda vivendo na casa e na barra da saia da mãe. E ali teve um estalo. O tal menino tinha dificuldades sim. Mas a mãe, muito antes dessa maravilhosa onda de reintegrar ao humano tudo que é humano, tinha tido uma ideia corajosa. Sem dizer nada a nós, nem a nossos pais, deixava seu filho ali no meio de outras crianças como uma criança "normal". Porque ele era uma criança do mesmo jeito que os outros. Afinal todos tinham as suas dificuldades. Tinha um que soltava peidos no elevador e antes que alguém o acusasse ficava vermelho e negava tudo: "não fui eu, não fui eu". Tinha outro que adorava brincar com insetos, incluindo aquilo que o Titãs muito tempo depois iria batizar de "bichos escrotos". Tinha um com uma cabeçorra magnífica. E todo mundo achava que ia ser jogador de futebol, meu priminho era um. 

      Ou seja, já naquela época, ou todo mundo era normal ou ninguém era.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A dor que o samba não cura...

História difícil de contar. Dói até hoje. Meu primo casa, tem um filho e se separa. Mas não do filho. Eles eram tão próximos que meu primo comprou seu primeiro telefone celular só para atender o filho a qualquer momento. Aos quatro anos de idade a saudade é pedreira. Pra variar, meu primo tentou o samba:

- Filhote, quando estiver com muita saudade e não puder falar com o papai, canta assim:

Tristeza,
por favor vá embora,
minha alma que chora
está vendo o meu fim

fez do meu coração
a sua moradia
já é demais 
o meu penar

quero voltar
àquela vida 
de alegria
quero de novo sambar

láláialá

Parecia estar funcionando. Pois bem. Um dia, em meio a uma interminável reunião, telefonema do filho. Decide atender. Do outro lado, aquela vozinha de criança obediente:

- Pai, já cantei aquela música três vezes, só que a tristeza não foi embora...

Branco total na memória. Não consigo lembrar da resposta do meu primo. E havia alguma?

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Meu primo faz a Sena

Creio que o século XX já ia pelas tabelas. Meu primo já havia trazido seus gregos para dialogar com Cartola. Agora tentava dar aula de História do Samba. O curso estava abarrotado, tinha ouvinte, visitante e até aluno regularmente inscrito. Contava com duas japonesas, originais de fábrica, que juravam saber sambar e sair em uma escola de Kioto, que não fica na Baixada Fluminense. As aulas teóricas eram bacanas, começando com as festas negras do século XVIII, mistura maravilhosa de sagrado e profano. Mas logo no primeiro dia de aula meu primo colocou no quadro os versos de Noel para servirem de alerta: "Batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio".

Sendo assim, havia que sair a campo, ir ao samba. Ou melhor, ir aos sambas, no plural. O samba carioca vivia um momento especial em mais um dos seus eternos ressurgimentos. Teresa Cristina cantando de olhos fechados no minúsculo palco do Semente. A maravilhosa roda aberta da Rua do Mercado no centro. Outra da melhor qualidade na Joaquim Silva. Galloti às terças no Severina. A inesquecível roda da Troça no alto, bem no alto de Santa Teresa. Parodiando Wilson Batista, gastava-se pouco e era divertido.

Foi aí que veio a ideia, sem dúvida soprada pelos deuses. Que tal fazer a Sena? Não aquela montanha de dinheiro, pois Paulinho já dizia que dinheiro na mão é vendaval. A Sena de batuqueiro é outra. Consiste em ir seis noites seguidas ao samba. E assim foi. Seis sambas de enfiada. Nada de porres homéricos ou varar toda a madrugada. Mas seis noites seguidas sambando. Foi divino. Lavou, enxaguou e colocou a alma para secar ao sol da alegria. Poderia ter havido um sétimo dia, é verdade. Mas meu primo ficou desconfiado, teve medo da hybris, do excesso que os deuses punem. A Sena já estava de bom tamanho.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A história do baiano enigmático

Meu pai agora mora dentro do meu peito. E na memória. Era um baiano enigmático. Gostava de cantar certas músicas que agora, pensando bem, acho que formavam uma narrativa, uma filosofia própria. A que ele repetia como um mantra era de um professor de biologia, paulista e sambista, o maravilhoso Paulo Vanzolini:

"Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima"

Mais tarde, disse a meus filhos que, se tivessem que aprender a cantar um único samba, que fosse esse.

Papai insistia em contar e recontar certos incidentes, sem nos alertar que ali estavam escancarados os seus princípios de vida. Como o ligeiro erro gramatical mas enorme acerto existencial da frase do sargento Velécio, nos tempos do cabo de guerra:

"Ou adapita-se ou morre"

No fim da vida, quando metade do seu coração já não batia, a outra metade batia em dobro. Viveu anos além do que a lógica médica poderia supor. Sem uma reclamação. Sempre sorrindo e a cada dia mais carinhoso, mas sem chororô. Na hora da onça beber água, sozinho em casa com uma empregada muito bacana e querida, não a deixou chamar a ambulância. Sereno, pediu apenas que ela segurasse a sua mão. Deixou como dádiva a coragem e a serenidade.

Só que eu não queria contar como ele morreu. Queria contar como ele viveu. Órfão de pai aos dez anos, estudou em um colégio interno em Petrópolis. Como o refeitório era pequeno, tinham tempo marcado para comer. Toda a vida ele comeu a mil por hora, como se a qualquer momento fossem lhe tirar o prato. E quando reclamavam da sua gulodice, ria e dizia: "É fome velha". Na adolescência, trabalhava como representante comercial de uma margarina, batendo pernas pelo Rio de Janeiro afora de padaria em padaria. Ao final do dia, lembrava, ia até uma biblioteca, contava o dinheiro, inclusive as moedas, e estudava um pouco antes de seguir para o colégio noturno. Nessa época ele era chamado de Zé Carioca, pela morenice, pelo nariz imponente e sobretudo por seu bom humor e dotes de batuqueiro. Chegou a ter um conjunto de samba com os amigos. No fim da vida, já debilitado, ainda tocava tamborim com ritmo e precisão cirúrgica. Para fazer veterinária na Rural, trabalhava na Biblioteca. Foi ainda estudante que conheceu minha mãe e o resto é história.

Mas e quanto ao enigmático? Bem, isso é o mais bacana. Muitas vezes, no jantar, com a família toda reunida, de repente nosso pai desatava num riso, que começava com um sorriso irônico e desabrochava numa gargalhada gostosa, sonora. Primeiro ficavamos perguntando a ele o motivo. Inutilmente. Ele fingia não ouvir e continuava a rir. Depois, ninguém aguentava e a mesa toda estava gargalhando sem saber o motivo. Aos poucos ele ia se acalmando, retomava a respiração normal e continuava a jantar. Não dizia uma palavra, nada como "depois eu conto" ou "mais tarde eu explico". Nenhuma vez agiu diferente. Quando eu me lembro dele, é a coisa que eu mais gosto de recordar.

Sei que todo o enigma do meu pai reside naquela gargalhada. À medida em que vou tendo mais e mais primos, reflito sobre o significado daquela explosão de alegria repentina, sem motivo aparente. Acho que é a mensagem que ele queria deixar para sempre gravada. De que ele ria? Ria da vida. Ria por estar vivo. Porque essa é a hora.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Jornalismo Miojo

Amigo de um amigo, importante jornalista, que trabalha em uma agência internacional poderosa, me manda um email. Aflito, tendo que escrever uma história para o dia seguinte sobre a questão racial no Brasil, queria me entrevistar por 15 minutos. E manda uma lista com meia-dúzia de perguntas que estamos todos tentando responder há séculos. Mas não se preocupem, as perguntas dele já vinham com resposta e tudo. As respostas dele, é claro. Para eu dar as minhas, vou ter que pensar mais um pouco, sem pressa, porque são questões importantes demais. Que tal na  Copa do Qatar ? Acho que com aquele calor todo os jogos hão de ser muito modorrentos. Ou então vai ser a primeira copa jogada no ar condicionado. Sobre isso eu poderia falar uns quinze minutos, fácil, fácil...

É o jornalismo miojo: você acha em qualquer biboca, fica pronto logo e já vem com o molho da sua escolha

domingo, 15 de junho de 2014

Quando a morte chegar...

Quando a morte chegar, espero poder olhar bem nos olhos dela e dizer com um sorriso: chegou tarde, bobinha, agora eu já vivi 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Os deuses são bons, Pindorama...

A bem da verdade, o jogo começou um dia antes, no sábado. Em dois bancos de madeira, frente a frente, os alemães do Autonama e os brazucas do Pindorama. Cada escritor, um texto. Os trabalhos foram abertos pelo imponente e clássico meio-campista Christoph Nussbaumeder, que por motivos linguísticos vamos chamar simplesmente de "o número 6 do Autonama". Pois bem, ele fez uma tabelinha maravilhosa com o craque e cérebro do time, Klaus Döring, que pelos mesmos motivos e por conta da vasta cabeleira de bruxa foi por nós apelidado carinhosamente de Valderrama. O texto se chamava "O coração futebolístico", um diálogo absolutamente delicioso entre um jogador e sua amada, que acaba por descobrir que o coração do seu homem (e não só o dele) tem o formato de uma bola. Todo mundo riu, era um texto encantador. Mas o Brasil empatou com um texto tão classudo que se fosse bola seria uma falta cobrada por Zico lá no ângulo. Nosso camisa 13 Gustavo Krause cantou "Os filhos de Pindorama", em que imagina os nativos da Terra das Palmeiras roubando uma bola de meia "dos homens do barco grande", aos quais eles resistem "com nossas palavras de rio, com nossas divindades de nuvens." Golaço. Até aí, um a um.

No dia seguinte, o glorioso domingo de sol de 8 de junho de 2014, o Pindorama FC, a seleção brasileira de escritores, tinha a difícil tarefa de resistir à poderosa esquadra alemã do Autonama, o Deutsche Autoren Nationalmannschaft, pra facilitar a seleção alemã de escritores. Os caras são grandes, rápidos, bem treinados, organizados e vencedores. São campeões do campeonato europeu de seleções de escritores, por enquanto a única competição desse tipo no mundo. Eles existem há 7 anos e são treinados por uma lenda do futebol profissional alemão, o ex-jogador Jimmy Hartwig. Ainda por cima escrevem muito bem, são simpáticos e educados. Não deixaram de ser gentis nem mesmo quando encaçaparam nove gols na gente em Frankfurt. No encerramento dos trabalhos do sábado, um dia antes do jogo, fiz questão de agradecer a eles o respeito e o carinho conosco, mas avisei:

- Se ganharmos de vocês não vamos ser tão respeitosos, vai ser um carnaval. Porque vocês são um grande time.

Na ida para o jogo, um show de Edvaldo Santana, Junião e deste modesto escriba. Teve samba, forró e o escambau. Os autonamas cantaram umas baladas alemãs e capricharam no lálálá. Podem não ter muito ritmo mas são afinadinhos. Congraçamento geral, ma non troppo. Quando chegamos perto o técnico deles avisou, agora não é mais hora de música, vamos nos concentrar no jogo.

No vestiário, o grande Betão Meireles, com toda a calma e segurança, depois de explicar didaticamente o que cada um deveria fazer, faz apenas uma pergunta:

- Tem alguém aí achando ser impossível ganhar deles? Se vocês acharem isso é melhor a gente nem entrar em campo.

Bem, corta pra hora do jogo, times perfilados, emoção geral. O belíssimo, melódico, equilibrado e harmonioso hino nacional alemão. Depois o nosso descontrolado, furioso, apaixonado e mentiroso hino nacional: "dos filhos desta terra és mãe gentil"? Só que na hora, meu, como dizem meus irmãos paulistas, o coração bate mais forte e você canta feito Pavarotti depois de papar uma macarronada. Tudo pronto, juíza da Federação Paulista, duas bandeiras e uma quarta árbitra a postos. Uma enorme multidão de umas 70 pessoas assistindo, cobertura da imprensa nacional e internacional e até o cônsul da Alemanha presente. Só faltava a bola rolar.

E como rolou. Pindorama, como na música do grande biólogo e compositor paulista Paulo Vanzolini, levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Começou bem postado, tocando a bola, sem chutão, sem afobação. O time alemão sentiu, não esperava aquilo. No meio de campo, Bith, Junião e Custódio mordiam cada palmo de grama como se estivessem defendendo a mulher amada de um dragão maligno. Celso Campos, na lateral direita, parecia ter dois pulmões, defendendo e atacando com furor. Moutinho fechava a porta na lateral-esquerda. Rogério era o soberano da área e Vladir não deixava o perigoso Moritz Rinke pensar em tocar na bola. Tínhamos alguma dificuldade no ataque, a bola não chegava no nosso craque Flávio Carneiro e Otávio jogava sem ter ninguém para tabelar, sendo parado com faltas pelos alemães quando tentava jogadas individuais. Mesmo assim chegou a ter uma chance de gol. Rodrigo Metroviário Viana era o homem-surpresa e fez boas tabelas com Celso. A defesa deles é muito boa e o Autonama joga bem fechado. Além disso, são rápidos no contra-ataque e o camisa dez deles (é melhor nem dizer o nome pra não quebrar queixo de ninguém) é uma espécie de Neto germânico, metia a bola aonde queria com sua canhotinha. Cada escanteio era um perigo. Mas no gol tínhamos Julio Muralha Ludemir, que acabou por se contundir ao sair corajosamente do gol e dividir uma bola com um alemão duas vezes maior do que ele. Teve que ser substituído por Marcos Yashin.

Termina o primeiro tempo zero a zero. Para nós, já era uma vitória. Oito meses atrás, naquele campo gelado de Frankfurt, a esta altura já estávamos perdendo de 5 a 0 e ninguém do nosso time sabia dizer se a bola era branca, azul ou cor de rosa. Tudo havia mudado. Nosso técnico teve que mandar o time sentar antes da preleção. Tava todo mundo em pé, ligado, aceso. O sonho impossível de ganhar deles parecia ao alcance da nossa mão, ou dos nossos pés.

A seleção alemã voltou bem melhor na segunda etapa. Trocaram alguns jogadores, baixaram a média de idade e ameaçaram ganhar o meio-de-campo. Eles tiveram duas boas chances. Uma na bola parada, que Marcos Yashin colocou para escanteio. A outra foi bem mais dramática: a bola sobrou toda saltitante para o arremate de um alemão quando o gigante Marcos esticou a perna com vontade e manteve o placar virginal. Nosso técnico mexeu no time para ganharmos mais fôlego e deu resultado. Reequilibramos a batalha no meio de campo e rondamos o gol alemão. Flávio começou a receber mais bolas e o nosso camisa sete, quando a bola está no pé, deixa de ser o tranquilo e talentoso escritor para virar um atacante infernal, difícil de marcar. Primeiro chutou uma bola quase roçando o poste esquerdo dos teutônicos, arrancando aquele tradicional úuuuuu da linda torcida pindorâmica presente no local. Depois, o lance do jogo. Mas deixa eu pegar um fôlego primeiro antes de contar.

Breque. Faltando dez minutos entra o artista Edvaldo Santana. Músico, compositor e craque de bola. Àquela altura ele era o jogador mais velho em campo, com seu possante motor 5.8. Um pouquinho roliço, nosso malandro da periferia não pareceu ter pinta de jogador de futebol para os impiedosos marcadores do Autonama. Logo um partiu resoluto na direção do nosso showman. Edvaldo protegeu a bola com seu corpinho, girou pra lá e pra cá e saiu com a bola no pé feito mágico quando tira coelho da cartola. Veio outro alemão, ainda com mais fome. Edvaldo também botou pra dançar, com todo o respeito. O terceiro já veio com sede de vingança. Deve estar procurando a bola até agora. Sabe onde ela está? Não está mais com Edvaldo, ele a lançou para Flávio Carneiro, o camisa sete balançou o corpo e meteu um balaço. Na trave!!!! A bola sobra para José Luiz Tahan. Tá lá o corpo estendido no chão, é o goleiro alemão. O gol aberto, a felicidade batendo à nossa porta, a bolinha pedindo, vai, vai... Tahan mete o pé, a bola descreve uma trajetória inesperada, por cima da trave... Se fosse futebol americano...

Mas isso aqui é futebol. Onde tudo pode acontecer. Onde um empate de zero a zero pode ser justo. Pode ser lindo. Pode ser até melhor do que uma vitória. Porque o empate calça as sandálias da humildade. Porque o empate nos lembra que o nosso objetivo não era derrotar os Autonamas. O nosso objetivo era fazer o melhor e sair de campo de cabeça erguida, sem ligar pro resultado.

Certa vez um primo meu foi convidado por seus alunos para pescar. Ele topou mas avisou que nunca havia pescado na vida. Eles disseram que não tinha importância nenhuma. Que pegar peixe era o de menos, o bacana era ficar lá batendo papo, bebendo, comendo e brincando. Se é assim, disse meu primo, eu vou. Foi até uma loja de pesca e pediu material completo: vara, anzol, molinete... Explicou a situação para o vendedor, dizendo que ia mais pela farra, nem se preocupava em voltar com peixe ou não. O senhor que o atendia para tudo e o olha de forma muito séria:

- Não diga isso.
- Por que?
- O senhor não sabe quais são as três melhores coisas do mundo?
- Não sei, não senhor
- A primeira é pescar pescando... se o cara tá lá tem que voltar com peixe
- OK
- A segunda é comer bebendo... comer sem poder beber não é a mesma coisa
- Ótimo, e a terceira?
- A terceira é fuder beijando... porque não há nada igual à mulher amada

Hoje, muitos anos depois daquela conversa, eu ousaria acrescentar uma quarta coisa dentre o que há de melhor nesse mundo. Jogar jogando. Fazer o máximo e depois ver que bicho dá. Nós eramos um bando de escritores típico: idiossincráticos, um "pouco" narcisistas, meio briguentos, orgulhosos. Tomamos um misericordioso nove a um (podia ter sido de treze ou quinze) e calçamos à força as sandálias da humildade. Beto Meireles, nosso técnico, fez de nós uma equipe e conseguiu em apenas dois treinos nos dar uma noção de organização. Nosso capitão, Custódio Rosa, foi incansável para nos proporcionar uma maravilhosa estrutura de treino e jogo. Todos deram tudo de si, em seu nome e pelos seus companheiros, forjamos uma fortaleza feita de bola, literatura, alegria e sobretudo amizade. Pois como já dizia o velho Marcel Mauss, camisa dez da antropologia, quem presenteia dá um pouco de si, acaba por se misturar ao outro. Algo que os funkeiros cariocas resumiram sabiamente no adágio "juntos e misturados".

Pois lhes digo uma só coisa mais. Não sei se doravante o Pindorama vai ganhar, perder ou empatar. Eu só sei que depois do inesquecível oito de junho de 2014, quando vocês virem um bando de barrigudinhos, carequinhas, gastos pela vida, meio estropiados, já em pleno segundo tempo da existência, não podem mais dizer que é um bando de escritores querendo formar um time. Agora nós somos, de direito e de fato, o Pindorama Futebol Clube.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Paz, amor e rapadura

Minha turma amada de Bruzundanga III é que me inspirou essa reflexão na aula de ontem. Professor deve tratar a turma como uma namorada. Antes de mais nada, deve seduzi-la, o tédio é crime inafiançável. Deve tratá-la bem, com educação e gentileza. Deve ouvi-la sempre. Dialogar o tempo todo. E estar sempre disposto a discutir a relação rs. Há que olhar olho no olho e ouvir a intuição. E surpreender sempre, de manhã, de tarde e de noite, porque amor de verdade é sempre novo, é sempre vivo.

Presentes, claro, muitos presentes, para demonstrar e ritualizar o afeto. E pelo gosto de ser generoso, de dar e dar-se todo. Mas o principal presente é usar o método rapadura, aquela que é doce mas não é mole não. Ajudar os estudantes a perceberem que são profissionais em formação. Que têm que trabalhar duro. Trabalho conjunto e individual. Horário é fundamental, assiduidade também, por mais careta que isso pareça. Se você chega atrasado sua namorada tem direito de se zangar. Se você falta aos encontros também. Como é que a relação vai se desenvolver desse modo? Como é que você quer pegar uma conversa pelo meio e entender do que se trata? Você fala com sua namorada e brinca de celular? Se queremos que nossa profissão seja respeitada precisamos respeitá-la. O coração do respeito é a reciprocidade. Professor não pode cobrar presença se vive faltando, nem fazer chamada se chega atrasado. E não pode passar trabalho se não for corrigir com atenção e carinho. Fazendo isso, pode cobrar feito segundo sargento do Exército. É preciso ter rebolado dialético pra ser duro e doce ao mesmo tempo.

Trabalho sim, mas este também pode ser prazeroso. Neste semestre, ao invés de responderem às tradicionais questões que normalmente pedem que eles resumam o texto que eles já leram e que o professor já explicou em sala, partimos pra travessura, pra brincadeira. Cada trabalho era um desafio. Fazer um poema sobre a Primeira República. Teve gente que tirou de letra e até caprichou na métrica. Houve quem respondesse em cordel, uma belezura. Uma conversa entre Getúlio, um industrial, um operário sindicalizado e um malandro? Moleza. Nem foi dificil também imaginar uma conversa entre Lacerda, JK e Jango sobre o golpe de 64. As imaginações, bem fundamentadas pelas leituras, correram soltas feito cavalos selvagens de comercial de cigarro de antigamente. Conceitos: bem acima da média. Em um questionário, a maioria dos alunos disse que teve que estudar mais, mas que teve mais prazer. E como diria Assis Valente:

Alegria,
pra cantar a batucada,
as morenas vão sambar
quem samba tem alegria

Minha gente,
era triste, amargurada,
inventou a batucada,
pra deixar de padecer,

Salve o prazer!
Salve o prazer!

Não há milagres. Só trabalho. É dureza. Mas quem já provou da rapadura sabe que ela é doce, doce, doce.

(Este modesto textinho é dedicado a duas turmas que conseguiram o impossível: me fizeram gostar de dar aula de Brasil III. Salve turma Rebolado Dialético de 2013-02 e salve turma Bruzundanga de 2014-01!)

Meus primos idiotas, parte 3

As idiotices foram e são tantas que fica difícil de escolher. Essa foi espetacular. Meu primo, em sua fase mais radicalmente libertária, resolve dar um curso totalmente "livre". Aceita uma turma com 80 alunos, gente pendurada até no lustre. Programa trabalhos, mas só para quem quisesse fazê-los. Não haveria cobrança de presença, chamada nem pensar. A avaliação e a nota ficariam a cargo dos próprios alunos. Sabe aquela coisa do copo meio cheio, meio vazio dependendo da sua visão? Os pessimistas diriam que 90% da turma não fez trabalho algum. Os otimistas diriam que apesar de tudo, 10% da turma continuou a fazer os trabalhos, por livre e espontânea vontade. Claro que foi um curso muito popular.

A auto-avaliação foi um show. Havia regras sim. Tinha que ser feita oralmente, diante da turma e do professor. Antes de dar sua nota, o aluno ou aluna tinha que explicitar seus critérios e o peso qualitativo de cada um deles: presença, participação, feitura ou não dos trabalhos, interesse e tudo o mais que fosse considerado relevante. Depois, tinha que dizer em alto e bom som a sua nota. Era de nove pra cima na maioria das vezes e uma boa parte da turma se outorgou dez, nota dez. Inclusive um aluno que só havia ido na primeira aula e que na frente de todos desenvolveu um interessante raciocínio, em uma lógica que faria Aristóteles sair da tumba e dar um triplo salto mortal:

- Eu abandonei o curso. Claro que eu deveria me reprovar. Mas não vou me reprovar, não é? Por isso, vou me dar dez.

Nessa hora, o filhinho do meu primo, que devia ter lá uns sete ou oito anos, olha para o pai e arremata de primeira:

- Pô, pai, não aguento mais esse teatro.

Mas nem tudo estava perdido. Havia uma aluna que frequentava todas as aulas, debatia, perguntava, lia os textos e fazia todos os trabalhos. Quando chegou a vez dela, a surpresa. Depois de explicar calmente os seus critérios, outorgou a si própria um modesto oito e meio. Diante do espanto e até da indignação dos colegas, ela respondeu com tranquilidade:

- Eu me dei oito e meio sim. Sei que fiz um bom curso, mas acho que posso fazer coisa bem melhor.

Silêncio geral. Sem levantar a voz, ela havia desnudado a farsa e colocado o dedo na ferida com vontade. Porque muito pior do que enganar um professor trouxa é enganar a si próprio.

Do malandro-otário que se deu dez eu nunca mais ouvi falar. A aluna sincera fez mestrado, doutorado e numa carreira relâmpago hoje é colega do meu primo, dá aula em uma universidade federal do Centro-Oeste. Mesmo que tardiamente, a nota dela é dez.

Meus primos idiotas, parte 2

Esse primo passou na prova para professor da rede estadual. Foi para uma escola no centro de Campo Grande, trabalhar no turno da noite. Na primeira vez foi de trem, para tentar avaliar como era ir, voltar, trabalhar e chegar à noite na escola para assistir aula. Apenas para ir, fora do horário de pico, já era de matar. O diretor olhou para ele de cima abaixo, deduziu a inexperiência da carinha de garoto e não teve coragem de escalá-lo para dar História. Ficou com seis turmas de O.S.P.B., Organização Social e Política do Brasil. Como a Constituinte de 1988 já apontava no horizonte, decidiu trabalhar as constituições brasileiras com as turmas. Na teoria, ótimo.

Acontece que esse primo, enquanto professor, estava um bocado cru. Acreditar em discos voadores, duendes e lobisomens é perfeitamente normal, mas acreditar na eficácia de aulas expositivas é dose pra leão. Ele preparava sua aula meticulosamente e a apresentava, tintin por tintin, para cada uma das seis turmas de 50 alunos que lhe cabiam. Distribuía folhas com resumos, chegava na hora, saía na hora, enfim, se dedicava ao máximo. Muitos alunos, educadamente, fingiam prestar atenção. Outros, menos resistentes, faziam, digamos, um protesto silencioso: dormiam. Meu primo, com uma pontinha de bom senso, pedia que não fossem acordados. Mesmo idiotas podem ter respeito pelos sonhos alheios.

Parêntesis para a sala dos professores. Meu primo passou a não frequentá-la mais. Durante os intervalos, ia para um cantinho da cantina comer seu sanduíche quietinho, esperando tocar o sinal. É que o clima entre os professores era deprimente. A desesperança era muito grande e o conformismo, seu irmão, também. Ele viu professores se referirem a alunos de forma no mínimo desrespeitosa, fazendo julgamentos morais do tipo:

- Viu a minissaia da fulana, qualquer dia aparece de barriga e depois reclama...

ou

- Sicrano nunca vai aprender, não adianta tentar ensinar

E por aí vai. Meu primo, idiota ou não, estava vivo. E ali era a terra fantasmagórica das almas mortas.

Voltemos à sala de aula. Vem a primeira prova. O resultado foi pífio. Experientes no assunto, 300 alunos haviam colado com maestria, só que de alguém que não havia estudado... Meu primo ficou furioso. Tanta dedicação, todo aquele trabalho, tivera como contrapartida uma atitude que ele considerava um desacato. Para cada uma das seis turmas ele repetiu uma descompostura exemplar. Quase esteve a ponto de se igualar a alguns frequentadores da sala dos professores. Quase os chamou de burros por terem "colado" de alguém que fizera uma péssima prova.

Como os deuses são bons, vieram as férias. Meu primo, ânimos acalmados, se pôs a pensar. Trezentos alunos estava errados e só ele estava certo? Não podia ser, havia algo de errado ali. Decidiu mudar tudo. Adeus aulas expositivas. Adeus folhinhas sérias e bem comportadas. Resolveu lançar mão de armas poderosas: humor e arte. Preparou cartolinhas onde colocou a fotocópia de dois livros de história do Brasil em quadrinhos. Duas maravilhas escritas por Lilia Schwarcz, uma ilustrada por Angeli e outra por Miguel Paiva. Tudo muito engraçado e ao mesmo tempo muito bem escrito. O método era simples. As cartolinas rodavam pelos grupos de quatro ou cinco alunos. Ao final da leitura eles tinham que responder a uma pergunta por escrito antes de passar para a cartolina seguinte. Meu primo ia de grupo em grupo vendo como iam as coisas e respondendo às perguntas. A sala de aula ficou barulhenta, viva, pulsante.

No corpo a corpo, era mais fácil para eles perguntar e no diálogo sobre o concreto é que as respostas eram construídas:

- Professor, aqui fala que Portugal tinha o monopólio da venda de produtos para o Brasil nesse tal de Pacto Colonial
- Você faz o que?
- Trabalho no comércio
- (outro aluno) Ele vende cachaça no boteco, professor
- Também é comércio. Aonde?
- Num botequim perto da estação de trem
- Por quanto?
- Por X
- Tem outros botecos perto?
- Sim, uma porção...
- Se não houvesse nenhum, se só o seu boteco vendesse cachaça pra turma toda que frequenta a estação. Quanto é que vocês iriam cobrar?
- Pô, professor, o preço ia lá pro alto
- Pois é, vocês teriam o monopólio da venda, que nem Portugal fazia com o Brasil

Claro que havia muita conversa solta, paquera, brincadeira e é bom que fosse assim para quem passara o dia inteiro espremido no trem ou ralando no serviço. Mas a partir daquela mudança de rumo, ninguém mais dormiu. Agora quem sonhava era meu primo.

Depois da leitura de todas as cartolinas vinha a segunda e mais ousada parte do método. Cada grupo teria que fazer uma obra artística com aquele conteúdo: uma música (valia paródia), uma peça ou um poema. Aqui a coisa começou a engasgar. Os alunos estavam com medo de se lançarem. Ninguém queria dar uma de boi de piranha, fazer um trabalho ruim, ser criticado pelo professor etc. Havia um grupo muito interessante. Era composto por cinco meninas, todas elas histórico-sociologicamente negras. Não havia quem desse gargalhadas mais sonoras lendo as cartolinas. Mas foram respondendo bem a todas as perguntas. Fizeram um samba sobre a nossa primeira constituição. Perguntaram se podiam se apresentar batucando. Claro que sim. Foi um sucesso. Meu primo as levou de turma em turma, elas sempre abafando, sempre muito aplaudidas.

A partir daí, todos ganharam confiança. Foi uma febre. Um grupo, com muita inteligência, fez uma paródia do rock do Ultraje a Rigor, Inútil. Perfeito para satirizar uma constituição que legitimava a escravidão e só permitia a participação política de proprietários. Houve quem fizesse poemas ou peças de teatro. Tudo era apresentado diante da turma, numa espécie de exame final transformado em programa de calouros. Meu primo resolveu radicalizar fugindo da prisão da nota. Quem fizesse um trabalho correto teria 10. Eles passaram a competir pelo aplauso do público, pela consagração da sua arte diante dos colegas. O professor ficava em segundo plano, como deve ser.

O mais emocionante ocorreu no último dia de aula. Um grupo que já havia feito seu trabalho pediu para apresentar uma peça. Tudo bem. Só que a peça não era sobre a História do Brasil. Era sobre a nossa história, deles e do meu primo idiota. Nela, satirizavam as pretensões e o autoritarismo do professor, bem como a resposta malandra da turma. Depois mostravam como tudo havia se transformado, no momento em que literalmente o professor se dispôs a ouvi-los. Porque ninguém dá voz a ninguém, todos têm voz. É só não abafá-la com aulas expositivas ou qualquer outro tipo de tortura. Foi assim que pouco a pouco, os alunos, de fracasso em fracasso, foram ensinando meu primo a ser professor.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Meus primos idiotas, parte 1

Tive vários primos idiotas. Bem intencionados, é verdade, mas idiotas mesmo assim. Tive um que queria ser especialista em História da Grécia. Um belo tema, sem dúvida, mas a especialização é como uma burrificação voluntária. Entender muito de uma coisa só é quase o mesmo - na verdade é pior, porque o sujeito se acha sabichão - do que não entender de nada. Pois bem, no meio do seu mestrado acerca da invenção dos bárbaros, ele recebe uma deliciosa (não resisti, me perdoem) bolsa-sanduíche para Atenas. Lá fica na Escola Arqueológica Francesa, um respeitável centro de pesquisa. Com acesso 24h a uma biblioteca com 300 mil volumes. Cada pesquisador tinha a chave da biblioteca, ligava a fotocopiadora por sua conta e fazia a festa. Meu primo acordava cedo, no frio, para aproveitar mais. Leu para a dissertação e também sobre temas variados. Fotocopiou centenas de artigos e dezenas de livros. Viajou pela Grécia, foi a Micenas, Esparta, Delfos, Olímpia, sem falar em Creta e na paradisíaca Santorini (Thera).

Claro que voltou se achando. Resolveu dar um curso sobre vasos gregos na graduação. Até aí, tudo bem. Afinal os vasos pintados são documentos importantíssimos acerca da vida econômica, social, política e religiosa dos gregos antigos. Dá perfeitamente para fazer uma descrição da vida cotidiana de um ateniense a partir da coleção de vasos que hoje se espalham por museus nos quatro cantos do planeta. Neles são representadas cenas de casamento, guerra, trabalho, mitológicas e até outras, bem apimentadas. Alguns pintores eram tão hábeis que ficaram famosos e são reconhecidos pelos especialistas como quem reconhece um Matisse ou um Van Gogh . Meu primo havia visto e fotografado um especialista na restauração de vasos antigos, o que o deixara mais animado. Bem, o assunto era relevantíssimo e até agradável, por trabalhar com imagens. Mas meu primo, idiota que era, estava tomado de vaidade pelo conhecimento especializado, um tipo de narciso acadêmico que brota mais facilmente do que tiririca do brejo. Sendo assim, começou o curso falando dos diferentes tipos de argila. É isso mesmo, argila.

A hybris, ou seja, a soberba, costuma ser duramente punida pelos deuses. E assim o foi. Um aluno o acusou, em plena reunião de departamento, de dar aula sobre "barro grego". De nada adiantou meu primo tentar explicar a importância dos vasos enquanto fontes blá, blá, blá. O estrago já estava feito. No mural dos estudantes foi afixado um protesto contra aquela disciplina inútil. Meu primo rebateu com classe, postando - no mesmo mural e sem pedir licença - um lindo poema de Yeats, "Ode a um vaso grego". Mas não havia mais jeito.

Até idiotas, todavia, têm momentos de sensatez. Na aula seguinte à polêmica, meu primo calçou as sandálias da humildade diante da turma. Admitiu o fracasso do curso, especializado demais. Forneceu aos alunos uma lista de temas alternativos dos quais eles escolheriam dois ou três para serem trabalhados em sala. Creio que escolheram democracia ateniense, mitologia e vida cotidiana, algo assim. Correu tudo bem. No que tange aos humanos, os deuses sempre aprovam a humildade. Há fracassos sensacionais. Uma vez vi uma entrevista com um prêmio Nobel de biofísica ou não sei mais o que. Perguntado pela jovem reporter acerca do aspecto mais interessante do seu trabalho no laboratório - afinal a biofísica não devia ser o forte dela - o velhinho abriu um sorriso e respondeu:

- É quando dá tudo errado...

Diante do espanto da moça, completou:

- Pois é aí que se aprende alguma coisa nova...


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Neymar, marola e vidraça

Uma jornalista de O Globo me pediu uma avaliação do clima no Rio durante a Copa para sair no domingo (8/6/2014). Como não sei se vão publicar, lá vai aqui mesmo:

Adeus Maraca, deixaram tua casca e lá dentro colocaram um novo studio de futebol ao preço de um bilhão e duzentos milhões para alegria da FIFA, das empreiteiras, das televisões e dos políticos. Explodem os preços de aluguéis, imóveis e de tudo o mais, incluindo o biscoito Globo. Claro que vamos torcer pela seleção, mas não pela Copa. Por isso a vergonha em colocar bandeiras no carro, em pintar os muros, em enfeitar as ruas. Na hora H, dá-lhe Neymar!  Protestos justos contra tudo isso, contra remoções, contra a falta de investimentos em infra-estrutura, em transportes. Mas quebrar vidraça de banco e tocar fogo em pneu, sem falar em atacar jornalistas, não é fazer revolução, muito pelo contrário, afasta a opinião pública,legitima a repressão e transforma o mar de junho de 2013 em uma marola. Pelo menos o mundo todo vai ficar sabendo que isto aqui, como dizia Elizabeth Bishop, seria um excelente lugar para uma cidade que de maravilhosa nada tem.

terça-feira, 3 de junho de 2014

300 dias ou como meu primo virou segundo sargento do Exército

Em plena ditadura militar, meu primo adolescente era de esquerda. Com 14 anos fez um trabalho de escola sobre o Pasquim. A secretária não incomodou Ziraldo e Jaguar. Dona Nelma disse que ela mesma era capaz de responder. O irônico é que o mais impressionante para aquele garoto foi o balcão de pagamento. Havia um buraco na parede e ao lado estava escrito caixa. Só que em torno do enorme orifício havia um desenho de uma mulher sedutora e avantajada e é lógico que a "boca do caixa" ficava exatamente onde vocês estão pensando.

Além do Pasquim ele lia tudo quanto era jornal alternativo como o Opinião, o Versus e depois o Movimento. Quando o ditador-general-presidente de plantão decretou o nefando Pacote de Abril, fechando o Congresso e instituindo os senadores biônicos, meu priminho babou de raiva em frente da televisão e bateu boca como se do outro lado Geisel estivesse ouvindo. Ele participava de manifestações e uma vez correu bem da polícia pela Cinelândia afora, quase derrubando mesa do Amarelinho. Só não era de partido algum, meu primo era ingênuo demais, avaliaram bem os seus amigos que pertenciam a organizações de esquerda. Era mesmo.

De qualquer forma, passa o tempo e meu primo passa no vestibular para Comunicação. Queria ser jornalista, afinal os jornalistas eram seus heróis anti-ditadura. Pediu aos pais que pagassem o curso na PUC, à época reputado como o melhor. Aqueles pilotis em flor... Mas meu primo não pode aproveitar nada disso. Foi obrigado, suprema ironia, a servir ao Exército.

300 dias devidamente contados e riscados em um papel quadriculado, dia a dia. Primeiro se apagam os sinais individuais: cabelos raspados dois dedos acima da orelha, todos com o mesmo uniforme, todos obedecendo à "ordem unida", sentido, descansar, direita volver... Basicamente, ensinar o corpo a obedecer, sem pensar, ou em linguagem militar, sem ponderar. Esqueça quem você é. Agora você tem um número e é rebatizado com um "nome de guerra". Aluno 807, Alvito.

Mas a história que eu quero contar hoje se deu no primeiro acampamento. Sabíamos que aconteceria a qualquer momento, sem aviso. Foi no dia de uma chuva torrencial, exatamente para que o campo de Gericinó estivesse todo enlameado. O primeiro dia foi infernal. Exercícios desgastantes e sobretudo humilhantes. Para fechar, uma marcha de 16 quilômetros, à noite, pelo mar de lama. Seguíamos em fila indiana quando diante de nós surgiu uma poça enorme. Ao lado, uma estreita passagem milagrosamente seca. Claro que o primeiro da fila desviou da poça. O tenente, aos gritos, mandou todo mundo voltar e passar chapinhando na lama, pisando com força. A lama entranhava nas botas, a água ia embora, a terra ficava e ia lixando os pés úmidos. Depois de três dias, não havia meias secas e os pés estavam em carne viva.

No fim do primeiro dia, com fome de leão, fomos jantar. Quer dizer, quase todos foram, menos um. Meu primo, tomado de uma indignação e de uma raiva que não podiam se expressar, se negou a jantar. Ele era magro feito uma varinha de condão e capaz de comer uma pizza gigante no café da manhã. Mas se recusou a jantar. Era a única forma de manifestar sua revolta. Duzentos e noventa e nove jantaram, saciaram a fome e comeram seu feijão com arroz como se pisar na poça de lama com força fizesse algum sentido. Meu primo ficou com fome aquela noite. Pediu licença e foi para um lugar silencioso pensar sozinho e ruminar seu descontentamento. Quando o tenente, em um golpe baixo, enviou um querido colega com um prato de feijão fumegante, cheiroso, ele recusou com alegria, se sentindo vitorioso. Naquela noite meu primo aprendeu que de uma forma ou de outra é sempre possível dizer não.

P.S: Ah, segundo sargento? Meu primo estava no CPOR, Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Ao fim do ano, depois da formatura, os alunos podiam fazer um estágio de 45 dias, ao fim dos quais seriam tenentes do Exército, além de embolsarem uma graninha. Os que não fizessem sairiam do Exército como segundos sargentos. Todos reunidos diante dos oficiais, o Major pergunta a meu primo em que quartel ele gostaria de "servir". Se na noite do feijão ele pudera dizer não em silêncio, desta vez ele pode encher a boca e dizer, de homem pra homem, apenas quatro palavras mágicas:

- Major, eu não quero.