Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Os deuses são bons, Pindorama...

A bem da verdade, o jogo começou um dia antes, no sábado. Em dois bancos de madeira, frente a frente, os alemães do Autonama e os brazucas do Pindorama. Cada escritor, um texto. Os trabalhos foram abertos pelo imponente e clássico meio-campista Christoph Nussbaumeder, que por motivos linguísticos vamos chamar simplesmente de "o número 6 do Autonama". Pois bem, ele fez uma tabelinha maravilhosa com o craque e cérebro do time, Klaus Döring, que pelos mesmos motivos e por conta da vasta cabeleira de bruxa foi por nós apelidado carinhosamente de Valderrama. O texto se chamava "O coração futebolístico", um diálogo absolutamente delicioso entre um jogador e sua amada, que acaba por descobrir que o coração do seu homem (e não só o dele) tem o formato de uma bola. Todo mundo riu, era um texto encantador. Mas o Brasil empatou com um texto tão classudo que se fosse bola seria uma falta cobrada por Zico lá no ângulo. Nosso camisa 13 Gustavo Krause cantou "Os filhos de Pindorama", em que imagina os nativos da Terra das Palmeiras roubando uma bola de meia "dos homens do barco grande", aos quais eles resistem "com nossas palavras de rio, com nossas divindades de nuvens." Golaço. Até aí, um a um.

No dia seguinte, o glorioso domingo de sol de 8 de junho de 2014, o Pindorama FC, a seleção brasileira de escritores, tinha a difícil tarefa de resistir à poderosa esquadra alemã do Autonama, o Deutsche Autoren Nationalmannschaft, pra facilitar a seleção alemã de escritores. Os caras são grandes, rápidos, bem treinados, organizados e vencedores. São campeões do campeonato europeu de seleções de escritores, por enquanto a única competição desse tipo no mundo. Eles existem há 7 anos e são treinados por uma lenda do futebol profissional alemão, o ex-jogador Jimmy Hartwig. Ainda por cima escrevem muito bem, são simpáticos e educados. Não deixaram de ser gentis nem mesmo quando encaçaparam nove gols na gente em Frankfurt. No encerramento dos trabalhos do sábado, um dia antes do jogo, fiz questão de agradecer a eles o respeito e o carinho conosco, mas avisei:

- Se ganharmos de vocês não vamos ser tão respeitosos, vai ser um carnaval. Porque vocês são um grande time.

Na ida para o jogo, um show de Edvaldo Santana, Junião e deste modesto escriba. Teve samba, forró e o escambau. Os autonamas cantaram umas baladas alemãs e capricharam no lálálá. Podem não ter muito ritmo mas são afinadinhos. Congraçamento geral, ma non troppo. Quando chegamos perto o técnico deles avisou, agora não é mais hora de música, vamos nos concentrar no jogo.

No vestiário, o grande Betão Meireles, com toda a calma e segurança, depois de explicar didaticamente o que cada um deveria fazer, faz apenas uma pergunta:

- Tem alguém aí achando ser impossível ganhar deles? Se vocês acharem isso é melhor a gente nem entrar em campo.

Bem, corta pra hora do jogo, times perfilados, emoção geral. O belíssimo, melódico, equilibrado e harmonioso hino nacional alemão. Depois o nosso descontrolado, furioso, apaixonado e mentiroso hino nacional: "dos filhos desta terra és mãe gentil"? Só que na hora, meu, como dizem meus irmãos paulistas, o coração bate mais forte e você canta feito Pavarotti depois de papar uma macarronada. Tudo pronto, juíza da Federação Paulista, duas bandeiras e uma quarta árbitra a postos. Uma enorme multidão de umas 70 pessoas assistindo, cobertura da imprensa nacional e internacional e até o cônsul da Alemanha presente. Só faltava a bola rolar.

E como rolou. Pindorama, como na música do grande biólogo e compositor paulista Paulo Vanzolini, levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Começou bem postado, tocando a bola, sem chutão, sem afobação. O time alemão sentiu, não esperava aquilo. No meio de campo, Bith, Junião e Custódio mordiam cada palmo de grama como se estivessem defendendo a mulher amada de um dragão maligno. Celso Campos, na lateral direita, parecia ter dois pulmões, defendendo e atacando com furor. Moutinho fechava a porta na lateral-esquerda. Rogério era o soberano da área e Vladir não deixava o perigoso Moritz Rinke pensar em tocar na bola. Tínhamos alguma dificuldade no ataque, a bola não chegava no nosso craque Flávio Carneiro e Otávio jogava sem ter ninguém para tabelar, sendo parado com faltas pelos alemães quando tentava jogadas individuais. Mesmo assim chegou a ter uma chance de gol. Rodrigo Metroviário Viana era o homem-surpresa e fez boas tabelas com Celso. A defesa deles é muito boa e o Autonama joga bem fechado. Além disso, são rápidos no contra-ataque e o camisa dez deles (é melhor nem dizer o nome pra não quebrar queixo de ninguém) é uma espécie de Neto germânico, metia a bola aonde queria com sua canhotinha. Cada escanteio era um perigo. Mas no gol tínhamos Julio Muralha Ludemir, que acabou por se contundir ao sair corajosamente do gol e dividir uma bola com um alemão duas vezes maior do que ele. Teve que ser substituído por Marcos Yashin.

Termina o primeiro tempo zero a zero. Para nós, já era uma vitória. Oito meses atrás, naquele campo gelado de Frankfurt, a esta altura já estávamos perdendo de 5 a 0 e ninguém do nosso time sabia dizer se a bola era branca, azul ou cor de rosa. Tudo havia mudado. Nosso técnico teve que mandar o time sentar antes da preleção. Tava todo mundo em pé, ligado, aceso. O sonho impossível de ganhar deles parecia ao alcance da nossa mão, ou dos nossos pés.

A seleção alemã voltou bem melhor na segunda etapa. Trocaram alguns jogadores, baixaram a média de idade e ameaçaram ganhar o meio-de-campo. Eles tiveram duas boas chances. Uma na bola parada, que Marcos Yashin colocou para escanteio. A outra foi bem mais dramática: a bola sobrou toda saltitante para o arremate de um alemão quando o gigante Marcos esticou a perna com vontade e manteve o placar virginal. Nosso técnico mexeu no time para ganharmos mais fôlego e deu resultado. Reequilibramos a batalha no meio de campo e rondamos o gol alemão. Flávio começou a receber mais bolas e o nosso camisa sete, quando a bola está no pé, deixa de ser o tranquilo e talentoso escritor para virar um atacante infernal, difícil de marcar. Primeiro chutou uma bola quase roçando o poste esquerdo dos teutônicos, arrancando aquele tradicional úuuuuu da linda torcida pindorâmica presente no local. Depois, o lance do jogo. Mas deixa eu pegar um fôlego primeiro antes de contar.

Breque. Faltando dez minutos entra o artista Edvaldo Santana. Músico, compositor e craque de bola. Àquela altura ele era o jogador mais velho em campo, com seu possante motor 5.8. Um pouquinho roliço, nosso malandro da periferia não pareceu ter pinta de jogador de futebol para os impiedosos marcadores do Autonama. Logo um partiu resoluto na direção do nosso showman. Edvaldo protegeu a bola com seu corpinho, girou pra lá e pra cá e saiu com a bola no pé feito mágico quando tira coelho da cartola. Veio outro alemão, ainda com mais fome. Edvaldo também botou pra dançar, com todo o respeito. O terceiro já veio com sede de vingança. Deve estar procurando a bola até agora. Sabe onde ela está? Não está mais com Edvaldo, ele a lançou para Flávio Carneiro, o camisa sete balançou o corpo e meteu um balaço. Na trave!!!! A bola sobra para José Luiz Tahan. Tá lá o corpo estendido no chão, é o goleiro alemão. O gol aberto, a felicidade batendo à nossa porta, a bolinha pedindo, vai, vai... Tahan mete o pé, a bola descreve uma trajetória inesperada, por cima da trave... Se fosse futebol americano...

Mas isso aqui é futebol. Onde tudo pode acontecer. Onde um empate de zero a zero pode ser justo. Pode ser lindo. Pode ser até melhor do que uma vitória. Porque o empate calça as sandálias da humildade. Porque o empate nos lembra que o nosso objetivo não era derrotar os Autonamas. O nosso objetivo era fazer o melhor e sair de campo de cabeça erguida, sem ligar pro resultado.

Certa vez um primo meu foi convidado por seus alunos para pescar. Ele topou mas avisou que nunca havia pescado na vida. Eles disseram que não tinha importância nenhuma. Que pegar peixe era o de menos, o bacana era ficar lá batendo papo, bebendo, comendo e brincando. Se é assim, disse meu primo, eu vou. Foi até uma loja de pesca e pediu material completo: vara, anzol, molinete... Explicou a situação para o vendedor, dizendo que ia mais pela farra, nem se preocupava em voltar com peixe ou não. O senhor que o atendia para tudo e o olha de forma muito séria:

- Não diga isso.
- Por que?
- O senhor não sabe quais são as três melhores coisas do mundo?
- Não sei, não senhor
- A primeira é pescar pescando... se o cara tá lá tem que voltar com peixe
- OK
- A segunda é comer bebendo... comer sem poder beber não é a mesma coisa
- Ótimo, e a terceira?
- A terceira é fuder beijando... porque não há nada igual à mulher amada

Hoje, muitos anos depois daquela conversa, eu ousaria acrescentar uma quarta coisa dentre o que há de melhor nesse mundo. Jogar jogando. Fazer o máximo e depois ver que bicho dá. Nós eramos um bando de escritores típico: idiossincráticos, um "pouco" narcisistas, meio briguentos, orgulhosos. Tomamos um misericordioso nove a um (podia ter sido de treze ou quinze) e calçamos à força as sandálias da humildade. Beto Meireles, nosso técnico, fez de nós uma equipe e conseguiu em apenas dois treinos nos dar uma noção de organização. Nosso capitão, Custódio Rosa, foi incansável para nos proporcionar uma maravilhosa estrutura de treino e jogo. Todos deram tudo de si, em seu nome e pelos seus companheiros, forjamos uma fortaleza feita de bola, literatura, alegria e sobretudo amizade. Pois como já dizia o velho Marcel Mauss, camisa dez da antropologia, quem presenteia dá um pouco de si, acaba por se misturar ao outro. Algo que os funkeiros cariocas resumiram sabiamente no adágio "juntos e misturados".

Pois lhes digo uma só coisa mais. Não sei se doravante o Pindorama vai ganhar, perder ou empatar. Eu só sei que depois do inesquecível oito de junho de 2014, quando vocês virem um bando de barrigudinhos, carequinhas, gastos pela vida, meio estropiados, já em pleno segundo tempo da existência, não podem mais dizer que é um bando de escritores querendo formar um time. Agora nós somos, de direito e de fato, o Pindorama Futebol Clube.

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