Eu e meus primos...

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terça-feira, 3 de junho de 2014

300 dias ou como meu primo virou segundo sargento do Exército

Em plena ditadura militar, meu primo adolescente era de esquerda. Com 14 anos fez um trabalho de escola sobre o Pasquim. A secretária não incomodou Ziraldo e Jaguar. Dona Nelma disse que ela mesma era capaz de responder. O irônico é que o mais impressionante para aquele garoto foi o balcão de pagamento. Havia um buraco na parede e ao lado estava escrito caixa. Só que em torno do enorme orifício havia um desenho de uma mulher sedutora e avantajada e é lógico que a "boca do caixa" ficava exatamente onde vocês estão pensando.

Além do Pasquim ele lia tudo quanto era jornal alternativo como o Opinião, o Versus e depois o Movimento. Quando o ditador-general-presidente de plantão decretou o nefando Pacote de Abril, fechando o Congresso e instituindo os senadores biônicos, meu priminho babou de raiva em frente da televisão e bateu boca como se do outro lado Geisel estivesse ouvindo. Ele participava de manifestações e uma vez correu bem da polícia pela Cinelândia afora, quase derrubando mesa do Amarelinho. Só não era de partido algum, meu primo era ingênuo demais, avaliaram bem os seus amigos que pertenciam a organizações de esquerda. Era mesmo.

De qualquer forma, passa o tempo e meu primo passa no vestibular para Comunicação. Queria ser jornalista, afinal os jornalistas eram seus heróis anti-ditadura. Pediu aos pais que pagassem o curso na PUC, à época reputado como o melhor. Aqueles pilotis em flor... Mas meu primo não pode aproveitar nada disso. Foi obrigado, suprema ironia, a servir ao Exército.

300 dias devidamente contados e riscados em um papel quadriculado, dia a dia. Primeiro se apagam os sinais individuais: cabelos raspados dois dedos acima da orelha, todos com o mesmo uniforme, todos obedecendo à "ordem unida", sentido, descansar, direita volver... Basicamente, ensinar o corpo a obedecer, sem pensar, ou em linguagem militar, sem ponderar. Esqueça quem você é. Agora você tem um número e é rebatizado com um "nome de guerra". Aluno 807, Alvito.

Mas a história que eu quero contar hoje se deu no primeiro acampamento. Sabíamos que aconteceria a qualquer momento, sem aviso. Foi no dia de uma chuva torrencial, exatamente para que o campo de Gericinó estivesse todo enlameado. O primeiro dia foi infernal. Exercícios desgastantes e sobretudo humilhantes. Para fechar, uma marcha de 16 quilômetros, à noite, pelo mar de lama. Seguíamos em fila indiana quando diante de nós surgiu uma poça enorme. Ao lado, uma estreita passagem milagrosamente seca. Claro que o primeiro da fila desviou da poça. O tenente, aos gritos, mandou todo mundo voltar e passar chapinhando na lama, pisando com força. A lama entranhava nas botas, a água ia embora, a terra ficava e ia lixando os pés úmidos. Depois de três dias, não havia meias secas e os pés estavam em carne viva.

No fim do primeiro dia, com fome de leão, fomos jantar. Quer dizer, quase todos foram, menos um. Meu primo, tomado de uma indignação e de uma raiva que não podiam se expressar, se negou a jantar. Ele era magro feito uma varinha de condão e capaz de comer uma pizza gigante no café da manhã. Mas se recusou a jantar. Era a única forma de manifestar sua revolta. Duzentos e noventa e nove jantaram, saciaram a fome e comeram seu feijão com arroz como se pisar na poça de lama com força fizesse algum sentido. Meu primo ficou com fome aquela noite. Pediu licença e foi para um lugar silencioso pensar sozinho e ruminar seu descontentamento. Quando o tenente, em um golpe baixo, enviou um querido colega com um prato de feijão fumegante, cheiroso, ele recusou com alegria, se sentindo vitorioso. Naquela noite meu primo aprendeu que de uma forma ou de outra é sempre possível dizer não.

P.S: Ah, segundo sargento? Meu primo estava no CPOR, Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Ao fim do ano, depois da formatura, os alunos podiam fazer um estágio de 45 dias, ao fim dos quais seriam tenentes do Exército, além de embolsarem uma graninha. Os que não fizessem sairiam do Exército como segundos sargentos. Todos reunidos diante dos oficiais, o Major pergunta a meu primo em que quartel ele gostaria de "servir". Se na noite do feijão ele pudera dizer não em silêncio, desta vez ele pode encher a boca e dizer, de homem pra homem, apenas quatro palavras mágicas:

- Major, eu não quero.


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