Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O ar da liberdade - homenagem ao mestre Leandro Konder

Do escritor fluente, do acadêmico brilhante e do professor que encantou turmas e turmas de alunos muito se irá falar. Mestre Leandro Konder foi hoje para o segundo andar, deixando o térreo mais e mais rasteiro. Conto aqui apenas duas pérolas da convivência com o ser humano bem humano que ele foi.

Muitas vezes o vi chegando na UFF, quase sempre na companhia da Profa. Margarida Neves. Saltavam do carro e, antes de mais nada, iam ver o por do sol na Baía de Guanabara, decerto a maior beleza que o campus da UFF podia e pode oferecer.

Em outro momento, emparedados em mais uma interminável sessão de tortura chamada reunião de departamento, notei que ele prestava enorme atenção e parecia fazer muitas anotações. A fisionomia estava relativamente séria, embora Konder estivesse sempre com um sorriso engatilhado, daqueles que nos alegram o coração. De qualquer forma, desconfiando de algo, cheguei perto e contive a gargalhada quando vi o que ele estava fazendo: uma caricatura debochada do chefe de ocasião...

Por essas e outras é que os alunos da UFF concederam ao mestre a grande honra de nomear o tablado onde as reuniões de diversos grupos se realizam fora de paredes, respirando o ar da liberdade. 

Salve, mestre Konder!

domingo, 2 de novembro de 2014

Embrulhando o peixe ou como ler o seu jornal diário

Dizem que jornal velho só serve para embrulhar o peixe no dia seguinte. É uma pena que a avalanche de notícias diárias soterre a reflexão que se faz necessária diante de certas informações. Nos últimos dias, em variados jornais, O Globo, Folha de São Paulo e New York Times, li artigos que mereceriam parar para pensar. Uma das dificuldades em fazer a leitura da "realidade" através dos jornais é que nele as informações aparecem desmembradas, fragmentadas, especializadas. O trabalho real de "leitura" consiste em tentar estabelecer relações.

Por exemplo, tomemos matérias diferentes, em jornais diferentes e em artigos de natureza diversa que vieram à luz no final do mês de outubro de 2014. Ana Maria Machado, presidente da ABL, em um artigo publicado em O Globo alerta para o fato de que uma das nascentes do Rio São Francisco secou. Em outra matéria, informa-se a criação de um tipo de eucalipto transgênico, que cresceria ainda mais rapidamente, obviamente consumindo ainda mais água do que o habitual e ainda por cima envenenando as abelhas com seu pólen monstruoso. Na mesma notícia ficamos sabendo da intenção em ainda multiplicar muitas vezes a área plantada com esta espécie que desertifica o solo e não oferece nenhum suporte à fauna: passarinho de verdade não pousa em "floresta" de eucalipto. Some-se a isso algo publicado na Folha de São Paulo: a cidade de Campinas vai passar a reaproveitar a água proveniente do tratamento do esgoto para, depois de uma segunda "filtragem", ser utilizada para consumo. No mesmo jornal, um cientista renomado, depois de examinar 300 artigos especializados, afirma que 20% da Amazônia já foi destruída e outros 20% sofreram uma agressão de natureza tal (com a retirada de muitas árvores, por exemplo), que não têm mais condição de se sustentar. A conclusão é que se não plantarmos árvores na Amazônia ela deixará de exercer o importante papel de captar a umidade vinda do oceano, a qual, por exemplo, vira chuva e água nos rios paulistas que abastecem a nossa maior metrópole. A conexão entre as notícias é tão óbvia que dispensa comentários.

Por fim, aquilo que não parece ter nenhuma relação com o conjunto de notícias mencionado: a campanha política brasileira durante as eleições presidenciais, descrita pelo New York Times como "uma corrida tumultuada, marcada por acusações de corrupção, insultos pessoais e debates acalorados, revelando uma polarização crescente no Brasil". Creio que tanto dilmistas quanto aecistas concordariam com essa caracterização. Em uma eleição travada numa chave maniqueísta, de Bem contra Mal, só se trocando a posição de Bem e Mal de acordo com a posição de cada um, não há espaço para debater questões que são mais importantes do que a corrupção, o Banco Central ou até mesmo o Bolsa Família. Com o país literalmente ardendo em uma seca catastrófica, o tema mais importante foi deixado de lado: o nosso modelo econômico poderá perdurar dessa forma ou levará à auto-destruição?

Junto com o peixe, são embrulhadas diariamente notícias que poderiam e deveriam se transformar em uma reflexão mais aprofundada e crítica. O peixe não vive fora d'água e nós não vivemos sem ela.

Marcos Alvito


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

De machado na mão

Aos amigos que restarem, fiquem tranquilos.
Estou em paz. 
O custo da minha paz é fazer a guerra, 
é compartilhar meu desespero, 
minha incredulidade, 
minha revolta com esse mundo que os caretas construíram. 

Xangô morre agachado não, 
Xangô morre é de machado na mão.

É tudo por amor

Seu eu guerreio, é por amor, 
se fosse por ódio, 
eu deixava pra lá... 
apertava o famoso botão do Ph...

As três mortes de Marcos Alvito



Morte 1: a morte do pesquisador, do especialista, do acadêmico
- Os cinco rapazes foram encostados no muro e executados com tiros na cabeça. Os miolos escorreram pelo chão. O sangue dos cinco formou uma poça. A senhora da casa em frente ainda tentava limpar a mancha vermelha quando fui lá no dia seguinte. Vi com meus olhos...
- (Profa.Dra. 01) Infelizmente estas coisas costumam acontecer nestes lugares
- (Profa.Dra. 02) Quando é mesmo a defesa daquela sua aluna...
Morte 2: a morte do professor
- O cartão do Santander é esse professor, já vem com o número da conta e tudo. É só você ativar. Com ele você vai no bandejão, com ele você pega livro na biblioteca, com ele você coloca crédito para pagar o ônibus...
Morte 3: do ser humano
- Por enquanto ainda não aconteceu. Pode ser hoje, pode ser a qualquer hora, qualquer dia. Por enquanto, ele está vivo. Quando você estiver lendo isso, ele pode já estar morto 

A última aula

Aula terminada. O velho mestre recolhe suas coisas e sua solidão. No ônibus, encontra uma aluna e sofre o gesto inesperado: uma mão estende ajuda. Na barca, a verdadeira aula começa e o velho mestre, finalmente, aprende. Ela lhe apresenta a universidade em que ele trabalha há 30 anos.

Onde a carteirinha de estudante foi substituída por um cartão bancário. É com este abre-te-sésamo que você come a ração do bandejão, ou pega os poucos livros que existem na biblioteca. O banco já te dá um número. O banco já recebe o teu email.

O professor se cala.

O professor morreu, agora só processa a dor.

A universidade acabou.

O último a sair, por favor devolva a chave da sua cela à administração.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Homenagem a Nicolau Sevcenko

História extraordinária, sem numeração:

Foi para o segundo andar Nicolau Sevcenko, na minha modesta opinião um dos maiores historiadores que o Brasil já teve.
Eu poderia admirá-lo por suas obras magníficas, sempre muito bem escritas, com rigor e sabor. Mas eu o admiro mesmo, de verdade, por conta de uma história sua que presenciei.

Meu primo era estudante de História e tinha ido a um Congresso da ANPUH na acolhedora João Pessoa, no início da década de 80. O auditório estava cheio, todos esperando com ansiedade o palestrante, um ilustre professor, de quem diziam maravilhas. Eis que chega um jovem (tinha só 29 anos) com os cabelos desgrenhados (nessa época todo mundo tinha muito cabelo) roupas bem informais e uma enorme mochila, daquelas de hippie. Vai até o microfone, tira a pesada mochila das costas, passa a mão nos cabelos como se fosse possível ajeitá-los... e começa:

- Boa noite, meu nome é Nicolau Sevcenko...

Ele estivera viajando até o último minuto antes de se trancafiar na sala com aquele bando de doidos que queriam estudar História...

O grande Sevcenko já sabia que afora o motorista e o trocador, é todo mundo passageiro...

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Dois dedos, algumas costelas e muitas alegrias

O impacto foi tremendo, à altura das costelas. E lá estava meu primo, não estendido no chão, porque o jogo era na areia da praia, mas se contorcendo de dor e com a sensação de que não conseguia respirar. E não conseguia mesmo. A pancada fora tão forte que as costelas haviam comprimido os pulmões e durante intermináveis segundos o ar não entrava. Pensou em gritar por socorro, mas sem ar não há voz... Foi salvo do ridículo pois alguns segundos depois estava tudo normal. Quer dizer, afora aquela dor nas costelas. Teve que dormir de um lado só por uns três meses...

Já tive muito primo maluco (quase todos), mas nenhum como aquele que começou a jogar rugby aos 44 anos. Foi assim: meu primo começou a estudar a história do futebol. Aí descobriu que ele e o rugby eram primos, digamos assim, para simplificar muito. Bem, então é claro que meu primo foi pesquisar o rugby e descobriu uma história fascinante de um esporte que quis se manter amador (mesmo de mentirinha) até 1995. Procurou mais um pouco e descobriu que havia um time de rugby no Rio, o Rio Rugby. Começou a frequentar jogos e começou a ser convidado a participar. Mas nem passava pela sua cabeça fazer isso: magrelo, ossudo, lento e com um motorzinho 4.4 decente, mas que já tinha visto melhores dias, meu primo achava uma temeridade começar jogar um esporte "de contato", para ser delicado.

E era uma temeridade mesmo. Mas não conseguiu resistir ao rugby, principalmente depois que apareceu na UFF, querendo montar uma equipe universitária, um tal  de Juan Manuel Pardal. Juan era um jogador argentino radicado em Niterói, casado com uma brasileira e um líder nato. Juntos, sob a liderança técnica, tática e humana de Juan, fundaram a UFF Rubgy. Por falta de jogadores, meu primo teve que entrar em campo. Jogar era muito bacana, mas o legal mesmo era ver um time se formando aos poucos, sem motivação econômica, só por amor ao jogo. Viramos todos amigos, quase irmãos, o que é característico do rugby, um esporte onde o coletivo é muito mais importante do que o individual.

Depois daquela pancada nas costelas, todavia, que já fora precedida de dois dedos quebrados, meu primo resolveu tirar o seu motor àquela altura já 4.5 de campo.

Mas é uma daquelas coisas da sua vida que faria de novo mil vezes.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Uma ou duas coisas que sei sobre ela

Denise, minha irmã mais velha , que morreu de leucemia aos sete anos de idade. Meu primo tinha seis anos. Enquanto Denise agonizava lentamente sofrendo com uma doença à época incurável, ele foi mandado para a casa do tio e dos primos mais velhos. Claro que aprontou. Quando viu seu primo mais velho sair com uma toalha enrolada na cabeça após o banho, o pequeno Marcos se pôs a fazer o mesmo. Só esqueceu que o primo tinha uma segunda toalha amarrada à cintura.

Brincadeiras à parte, o choque foi tão grande que os pais optaram pelo silêncio absoluto. E meu primo acabou aos poucos apagando sua irmã mais velha da memória. Sabe que ela tinha lindos cabelos de cachos grandes, olhos vivos e a pele mais morena do pai. Que adorava ir à escola e detestava chegar atrasada. Soube depois pelo primo Cristóvão (um primo de verdade) que Marcos e Denise eram os melhores amigos, inseparáveis, não brigavam nunca. Transferiu o amor e o entendimento perfeito para a caçulinha, a Nanda. Agora só tem fotos amareladas de Denise vestida de baiana, com turbante na cabeça. E uma melancolia presa na garganta.

sábado, 26 de julho de 2014

A sabedoria de Mestre Ivan

Mestre Ivan foi um sábio-capoeira que conheci no Recôncavo Baiano, o lugar onde o Brasil nasceu de fato, com cana de açúcar, muita chibata mas também festa, vida e alegria para responder à tristeza. Certo dia, sem mais nem menos, Mestre Ivan me soltou esta pérola, inseparável do seu sotaque baiano malemolente e calmo:

- Felicidade não é na hora, felicidade vem é depois...

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Rebeldia Futebol Clube

Essa cambada de primos, modéstia à parte, sempre foi rebelde.

Reza a lenda que meu priminho mais novo não queria abandonar aquele lugar quentinho onde ele flutuava tranquilo e nem precisava sair de casa para ser alimentado. O parto dele demorou horas e emperrou por causa do tamanho da cabeça. O jeito foi meter o fórceps na cabeça do moleque. Claro que depois ele não iria bater bem da cachola como vocês sabem.

O bebezinho também não era fácil, não gostava de dormir no berço, vê se pode. Só parava de chorar se era balançado no colo. Mas não dormia. Só pegava no sono mesmo depois de papai levá-lo para um passeio no jipe. Decerto queria tomar um ar.

Pequeno, ainda engatinhando, cansou daquele negócio de papinha dada na boquinha, bilu, bilu. Pra mostrar quem mandava ali, numa hora de descuido parental, subiu na mesa, empunhou garfo e faca em atitude de desafio. Não procede o boato de que teria dito "Eu quero mocotó!"

Lá pelos sete anos, se recusou a fazer a primeira comunhão. Quando a mãe disse que o padre era legal e que tinha um futebol depois, o sujeitinho abusado respondeu que se essa tal de primeira comunhão fosse bacana não precisava ter jogo de futebol depois. Quando o padre veio à sua casa para que ele não morresse pagão e ardesse no Inferno, disse para a mãe: por que eu tenho esse privilégio? Não confio nesse padre. Como sabem, foi batizado mas é  pagão por escolha e acredita nos deuses gregos...

Ainda pequeno, fez um abaixo-assinado e uma passeata no prédio, em plena ditadura militar, para pedir a liberação do futebol... Pichou as paredes do edifício, juntamente com um amigo, que depois lhe dedurou, contra o porteiro que lhes tomava a bola. Tiveram que esfregar tudo.

Adolescência? É até covardia. Batia boca com Geisel na televisão, fazia discursos contra a Coca-Cola, a água negra do imperialismo, lia todos os jornais de esquerda alternativos (com o perdão da redundância) e participava de tudo quanto é passeata, cineclube, debate, onde tivesse algo contra a ditadura lá estava meu primo.

Hoje não, meus primos são tranquilos, conformados, passivos até. Infelizmente, de vez em quando mentem um pouco rsrs.


terça-feira, 22 de julho de 2014

Perdeu Playboy

Sim, mas não foi só a Playboy, perdeu a Status, a Ele e Ela, e até uma revista chamada Homem embora só tivesse mulher pelada … Calma, já vou explicar direitinho. Esse primo tinha uns 16 anos e estava morando na casa da sua querida avó Isaura.  Ela era portuguesa, vascaína e a pessoa mais doce que ele já conheceu. Mas a rapadura também é doce, sabe como é?

Pois bem. Nessa época, meu primo era quase um santo. Ele acordava cedo, tomava café com a vovó querida e ia para a escola. Voltava, almoçava com a vovó amada e em seguida enfiava a cara no estudo. Começava lá pela uma da tarde e ia até a hora do jantar, por volta das sete horas. Todo santo dia, menos dia santo, ou seja, no fim de semana folgava. Aí lia seus romances, ia ver um filme com os amigos ou ao Maraca ver o Flamengo. Estudava tanto que mesmo na véspera da prova continuava somente com o ritmo normal. E nada de estudar à noite ou varar a madrugada. Não era necessário. O cara era um CDF profissional.

Tímido que só, nem pensava em namorar. Nas festas, ficava apenas olhando ou então dançava um pouco e logo se sentia desajeitado, achava que tava todo mundo olhando pra ele… Resultado? Era o melhor amigo do jornaleiro: tornou-se o rei das publicações "adultas" mencionadas acima. Por isso era quase santo.

Vovó, sempre zelosa, cuidava bem do netinho. Um dia, quando ele chegou da escola e os dois almoçavam, ela deu a notícia aterradora:

- Meu neto, fiz uma limpeza no seu quarto. Joguei umas coisas fora.

Tão simplesmente. Difícil foi terminar o almoço. Para não dar na pinta, ele comeu até sobremesa.

Depois, foi checar a tragédia. Nem sinal. Alguns itens eram de colecionador, a primeira Playboy no Brasil, por exemplo. Havia também as "preferidas", aquelas com as quais ele quase conversava, digamos assim. Morenas voluptuosas, louras falsas e verdadeiras, japonesas eventuais, mulatas... Todo um harém de Onam desaparecido em um instante. O Vento levou… ou melhor, vovó jogou fora.

Não havia jeito, vovó não iria dar mole daqui pra frente.

E agora?

Vai aprender a dançar, primo!

domingo, 20 de julho de 2014

Meu primo vira grego...

A especialização é uma burrificação voluntária. O cara passa a vida toda aprendendo cada vez mais sobre cada vez menos. Vira um sabe tudo acerca de quase nada. E começa a olhar para os seres humanos "normais" como se fosse um PhDeus com pena dos reles mortais comedores de pão. Tive um primo que caminhava a passos largos para ser um especialista da Grécia antiga. Já tinha livro sobre o assunto, ia nos congressos, artigo publicado em francês, os ingredientes da receita já estavam todos lá.

Mas aí ele deu de frente com a vida. Saiu do gabinete um pouco. Olhou em torno. Na televisão, a cena da barbárie cotidiana, que só chocou a cidade porque aconteceu na linda e loura Zona Sul. O o bandido que ousara tentar assaltar o shopping é encurralado por policiais e executado atrás de uma kombi. O mais chocante não foi aquilo e sim os comentários: "É isso mesmo, tem que matar esses desgraçados". Quem havia dito isso era uma doce menina de doze anos.

Meu primo parou e pensou. O que um ateniense de verdade faria se a sua pólis, se a sua comunidade de cidadãos vivesse uma situação daquelas? Era fácil responder. No século VI a.C. Atenas ficou dividida em duas partes, em uma sangrenta guerra civil, que eles chamavam de stasis. Matar, cortar cabeça, tocar fogo, valia tudo. Ou melhor, quase tudo. Ficar em cima do muro não valia. Quem não tomasse partido perdia os seus direitos de cidadania. Portanto, a decisão era fácil. Meu primo suspendeu a tese sobre as mulheres de Atenas e Esparta. Primeiro para estudar a Penitenciária Lemos Brito, uma unidade em que só entrava quem tivesse sido condenado a pelo menos dez anos de tranca. Depois foi proibido de frequentar o estabelecimento penal após uma semana cultural pensada por seu amigo Marcelo Freixo. Acabou pesquisando aquela que era considerada uma das favelas mais perigosas do Rio, para onde foi levado por seu amigo poeta Deley de Acari.

Ali, reencontrou os gregos. Não mais de túnica, mas de bermuda e chinelos ou até mesmo descalços. Gregos de cabelos crespos, narizes achatados e lábios grossos. Gregos tostados pelo sol. Reencontrou as ruas labirínticas, sujas e barulhentas como as ruas de Atenas à época de Sócrates. Reencontrou as cores vivas que recobriam os templos. Como na Grécia antiga, caminhou em meio a um mundo povoado por deuses. Reencontrou um mundo viril, centrado na ideia de honra. Ironicamente, ao contrário do que lhe diziam os acadêmicos, ao contrário da acusação que lhe faziam de ter abandonado a Grécia antiga, agora estava mais perto dela do que nunca.

Ali, nas palavras sábias de Dona Marlene, aprendeu a ser gente. Aprendeu a rir, brincar e gargalhar como um ateniense fazia. Muitas vezes com alusões sacanas a perus gigantescos, como nas comédias de Aristófanes e nos becos de Acari. Ali aprendeu que aquela famosa frase latina que vivia repetindo para os alunos era mesmo verdadeira e que nada do que é humano lhe era ou deveria ser estranho. Ali ele deixou de ser um burro voluntário, apenas mais um especialista em Grécia antiga.

Porque estudar a Grécia antiga é bacana, mas é muito mais divertido virar grego...

sábado, 19 de julho de 2014

Parecia, mas não era

Aquele primo começou a dar aula na universidade tão jovem, mas tão jovem, que ele mal se distinguia dos seus alunos. Naquele tempo havia o costume das aulas trote, pois o pessoal do curso de História se recusava a dar trotes humilhantes e ou físicos. Um dos alunos mais antigos, de preferência alguém com uma atitude já doutoral e uma voz possante, sem falar no senso de humor afiado, entrava em sala como se fosse um deus do Olimpo e começava a meter medo na calourada. Falava de quão difícil seria aquele curso e depois apresentava uma série de trabalhos que seriam desenvolvidos durante o semestre e uma bibliografia interminável onde havia títulos de mentirinha como A capital, de Carlos Marques. Depois de uma meia hora de terror, o cara se revelava, tudo acabava em gargalhada e pronto.

Acontece que o meu primo tinha a aparência, no máximo, de um aluno de 2o. ano. E ele lecionava História Antiga, uma disciplina do primeiro período. Às vezes quem dava a primeira aula aos calouros era ele, que não admitia que sua sagrada aulinha fosse usada como aula trote. Para piorar, ele também passava uma montanha de trabalhos, só que desta vez era a sério. Já viram, né?

Certa vez ele foi dar a primeira aula do semestre para uma turma de calouros. Começou todo sério, como aliás os veteranos faziam na aula trote e depois apresentou a lista interminável de deveres. Notou que desde que havia entrado em sala uma aluna havia olhado para ele com uma pergunta nos olhos: será que esse cara é professor mesmo? Não será uma aula trote? Como ele estava acostumado com aquilo, prosseguiu sem se preocupar. Mas à medida em que ia explicando como seria o curso, bem puxado, cheio de avaliações, resenhas, cronologias e outras coisas, a aluna da primeira fila ia abrindo um sorriso que parecia dizer: Você não me engana não. Meu primo começou a ficar um pouco incomodado com aquilo e para sanar quaisquer dúvidas, resolveu esclarecer:

- Olha só, eu sou bem jovem, coisa e tal, mas isso aqui é uma aula de verdade, não é uma aula trote

Foi o que bastou. A gente costuma ouvir o que quer e a tal aluna, que já suspeitava fortemente que aquilo só podia ser uma brincadeira, levantou-se quase às gargalhadas dizendo:

- Eu sabia! Eu sabia! Claro que é uma aula trote!

Parecia, mas não era. Para explicar é que foi uma África.

Para evitar cenas assim, meu primo deixou crescer uma barba malfeita, caprichou nos óculos e na pose professoral. Os alunos dos semestres seguintes devem ter pensado:

- Poxa, o disfarce desse aí tá bom pra caramba!

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Cyber-idiotices

Todos sabem que esta máquina maravilhosa e terrível que é o computador opera com linguagem binária, do tipo 0 ou 1. A partir daí ele faz tudo, dá conta de cor, som, texto, movimento e cada vez mais inimagináveis montanhas de dados.

O Facebook, sem dúvida, é aquilo que Marcel Mauss chamaria de um fato social total: pois tem dimensões culturais, políticas, comerciais e outras, todas evidentemente entrelaçadas. Em um país com quase inexistente tradição democrática, com uma sociedade civil muito fraca e instituições que perdem legitimidade a passos acelerados, o "Face" acabou virando uma arena. Mas uma arena mesmo, daquelas de UFC, ou até pior, porque até no UFC existem regras e no FB vale dedo no olho, chute nos bagos e até mordida em tudo quanto é lugar. E não estou me referindo a grupos sadomasoquistas fechados e sim ao "debate político".

Experimente fazer uma postagem claramente política. Foi o que fiz publicando um vídeo em que um capitão da PM tenta explicar o inexplicável: o cerco de todas as saídas da Praça Saens Peña e o impedimento do direito básico de ir e vir. Pois bem, vejam só alguns dos comentários que tive que "ouvir":

"Nêgo é folgado, né? (…) Se todos os policiais fossem assim seria uma beleza. O policial foi corretíssimo."

(em seguida, a mesma pessoa): "Mas o policial foi frouxo. Levantando a voz, assim devia botar o cara no lugar"

"o policial indica a rua que ele tem que pegar, e até o rapaz que está filmando dá a entender que ele quer ir pela rua dele e não fazer o desvio" [TODAS AS RUAS ESTAVAM BLOQUEADAS E O POLICIAL SABIA DISSO, M.A.] e acrescenta "é a mesma coisa quando a prefeitura fecha a rua no fim de semana"

"Ele não disse que é lei que te impede de passar ali! [NÃO, O VÍDEO É SOBRE ISSO, NÃO HAVIA NENHUMA LEI, OU AO MENOS, SE HAVIA O POLICIAL NÃO SABIA QUAL ERA, M.A.]
e continua: "e o que tem haver [sic] a polícia estar acima da lei?"

"Qualquer pessoa sensata há de convir que seriam necessárias aquelas barreiras"

"MIMIMIMIMI puta que pariu, só a voz do cara já irrita! O bloqueio é legal sim!"

"Você que postou isso é um MALA SEM [grifo do autor] alça, o policial está coberto de razão, só você não se toca, seu MALA"

"este babaca [o autor do vídeo, no caso eu rs] não foi porque queria mesmo era arrumar problemas, se fosse comigo ainda tinha dado uma borrachada e um tiro de borracha nele."

e por aí vai…

Como tenho alguma formação em antropologia, tento achar tudo divertido, tento me esforçar para compreender o "outro". Mas tenho também que avaliar que hoje vivemos uma polarização nefasta à nossa cultura política. Não existem só PT x PSDB. Não há que ser contra ou a favor da polícia. Não somos computadores, não somos obrigados a pensar binariamente. Falta gingado dialético e isso dos dois lados. Logo depois de filmar e postar, tentei explicar ao capitão que aquela não era uma questão pessoal e sim política. Eu não levantei a voz, eu não o agredi verbalmente e diga-se de passagem ele também agiu civilizadamente, talvez para desespero dos seus comandados.

Eu já dei aula para oficiais da Polícia Militar na UFF e posso atestar que não vieram de outro planeta. A maioria deles entrou na polícia militar por necessidade financeira inclusive. Sempre os tratei com respeito em sala, embora atacando (com argumentos históricos) a tradição da instituição que os formou e à qual eles estão ligados. Tenho presentes dados por minha turma de pms e me orgulho de tê-los ganho.

Cinco minutos depois eu estava conversando com uma militante que alegava que os policiais já haviam deixado de ser seres humanos. Também não concordo com isso. Como é que alguém acredita ser possível mudar o mundo se não acredita ser possível mudar as pessoas?

Sei que agora vou apanhar da esquerda também, mas isso não importa. Eu acho que o Facebook deve sim, ser utilizado de forma consciente e para divulgar ideias. Mas acho que não é o lugar apropriado para debatê-las. Aqui grassam as cyber-idiotices. Notem que não chamei ninguém de idiota, me refiro apenas a certos pensamentos, a certas forma de ver o mundo e de se dirigir a outros seres humanos comedores de pão.

Não há conversa, não há diálogo, quando não há um mínimo de respeito de parte a parte. Com o perdão de ter que afirmar algo tão básico, tão óbvio.

Nessa hora São Guimarães Rosa me socorre:

"Quando a gente odeia uma pessoa, dedica a vida toda a ela"


P.S: Idiota, idiotice tudo vem de um termo grego que significa "o mesmo". Idiotice é ficar no mesmo sempre, ser incapaz de mudar, de pensar diferente, de adotar outra opinião. É uma forma de morte em vida.

domingo, 13 de julho de 2014

Meu dia de Black Bloc

É uma brincadeira. Nunca joguei uma pedra em alguém ou quebrei uma vidraça. A última vez que briguei na mão com alguém eu tinha 14 anos e apanhei ao defender um amigo que estava sendo atacado por namorar uma moça do Leme, ele que morava em Botafogo. Sempre achei e continuo achando a "tática black bloc" um grande equívoco, responsável pelo esvaziamento das manifestações, colocando a opinião pública contra os protestos e facilitando de forma suicida a repressão policial.

Mas os deuses nos colocaram no mesmo barco por uma tarde. Quando soube do arrastão policial da noite do dia 12 de julho, com a prisão arbitrária de 19 ativistas à véspera da final da Copa, fiquei absolutamente indignado. Acordei no domingo e quando vi a postagem de uma amiga convocando para um protesto na Praça S.Peña fui para lá, onde encontrei minha amiga.

Lá pelo meio-dia, a praça estava uma festa. Jovens pintando faixas, outros exibindo cartazes, questionando a ditadura das UPPs nas favelas ou a violência sofrida pelo povo palestino. Estava mais para carnaval do que para guerra, embora eu notasse a apreensão em vários rostos. Quando quisemos ir casa dela, descobrimos que a praça havia sido totalmente cercada por policiais, com todas as saídas bloqueadas por pms. No caminho, encontro dois torcedores argentinos, vestidos com sua bandeira e completamente perdidos sem saber o que estava acontecendo. Peço que venham comigo.

Em um dos bloqueios, sou encaminhado ao comandante, um tenente-coronel digitando em seu celular. Ele nem mesmo levanta os olhos para mim quando digo boa tarde. Mas quando pergunto a ele qual era a lei que impedia um cidadão brasileiro de caminhar livremente pelas ruas ele me dá "permissão" para passar. Eu, minha amiga e os dois argentinos, que ficam muito agradecidos. Vamos para a casa dela e almoçamos.

Decido ver a final da Copa, confortavelmente instalado no sofá. Mas recebemos o telefonema de duas amigas que haviam sido barradas na esquina, bem onde havia uma padaria. Fomos até lá, dispostos a usar a mesma argumentação para liberá-las. Quando chegamos elas estavam sendo obrigadas a mostrar as faixas que carregavam, como se os policiais tivessem direito de proibir esta forma de expressão. O que veio depois foi pior.

Tentei conversar com o oficial, um capitão de nome Canito. A única coisa que ele soube me dizer é que estava cumprindo ordens. Resolvi filmá-lo para registrar o absurdo da situação. Creio que fica patente para todos que viram o despreparo completo de uma pessoa que estava comandando trinta homens armados até os dentes. Enquanto eu dava um telefonema, saindo de perto por causa do barulho, um sargento se aproximou da minha amiga e procurou intimidá-la perguntando se ela tinha filhos. Depois passou o resto do tempo olhando para nós com cara feia e com a mão direita no coldre.

Enquanto isso, a televisão da padaria reunia uma mini-multidão heterogênea. Havia uma mulher animadíssima torcendo pela Alemanha aos gritos, apaixonada pelo técnico do esquadrão teutônico. Uma argentina, em bom castelhano, clamou pela solidariedade latino-americana na forma de um gol. Alguns policiais, já mais relaxados, comiam seu biscoitinho. Outros haviam saído das suas posições e avançado, mas não era um ataque, era só pra ver o jogo melhor. Nessas horas é que eu entendo o Aldir Blanc...

A Alemanha fez seu gol. A mulher delirava. A solidariedade latino-americana sofria um duro golpe. Assim que termina o jogo o bloqueio é dissipado. Esta vetusta e insigne instituição, nascida há 205 anos para prender escravos fugidos, finalmente nos deixava voltar para casa.

Até que meu dia de black bloc foi divertido, se não fosse essa indignação que não passa por nada. Ai que vontade de atirar uma pedra...

domingo, 6 de julho de 2014

Quem quebrou Neymar ?

Foi o Zuniga? Foi. Mas teve muita ajuda. De quem? De uma triangulação perversa:

1. Para começar, o esporte espetáculo, show televisivo para o qual uma entrada violenta, mostrada em câmera lenta, é tão "bonita" e plástica quanto um drible (e há cada vez menos dribles a mostrar).

2. Talvez seja isto que explique a clara orientação da FIFA no sentido de que os juízes deixem o jogo "correr solto", com os cartões guardados no bolso o máximo possível. O esporte espetáculo, bilionário, movimenta hoje sete vezes mais do que Holywood e duas vezes a indústria automobilística. Os interesses em jogo, travestidos de patriotada, são muitos. Os jogadores entram em campo dopados psicologica e economicamente. Daí para meter o joelho na coluna de um adversário é um pequeno passo.

3. O Felipão, como escrevemos aqui há uma semana, criou uma tática que isolava o Neymar, sem ninguém para tabelar com ele. Contra o Chile, contra o México e ontem contra a Colômbia, Neymar, sozinho, tinha que conduzir a bola com um verdadeiro "corredor polonês" lhe esperando. Mais cedo ou mais tarde iriam quebrá-lo. Comparemos com Messi e vemos claramente a diferença. Há sempre um ou dois jogadores se colocando para receber a bola. Messi só arrisca o lance individual no final do jogo, com os zagueiros cansados e já pensando que ele vai passar a bola. No belo gol de Di Maria foi assim: Messi arrancou, três adversários vieram para cima dele, furiosos e ele imediatamente tocou para Di Maria.

Neymar nunca teve Di Maria para passar com Oscar marcando o lateral e Fred totalmente fora do jogo. Só quem tabelou com ele, a Copa inteira, foram as travas das chuteiras adversárias. O endeusamento de um garoto de 22 anos como super-homem, por parte da imprensa, também ajudou neste linchamento. O irônico é que a FIFA e o Felipão vão explorar o episódio ao máximo, isentando-se de qualquer culpa. Enquanto isso, Zuniga vai carregar nas costas o peso de um processo perverso de transformação do esporte mais amado do mundo em uma mercadoria mundial.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O feitiço de Creta

Era um dia de sol maravilhoso. O Palácio de Cnossos ficava a alguns quilômetros do centro da cidade. Meu primo, emocionado, percorreu as salas com afrescos "restaurados" pelo arqueólogo Arthur Evans e subiu ao terraço. De lá se via a bela vegetação da ilha de Creta. Ele arrumou um lugar para sentar e ficou ali feito jacaré, tomando um solzinho e feliz por estar realizando o sonho de conhecer aquele lugar lendário. Estava pensando no Minotauro e no labirinto quando ela surgiu. Era lindíssima. Claramente olhou para onde meu primo estava. Só ela e ele. No Palácio de Cnossos. Meu primo estava tão, mas tão feliz, que não quis estragar o momento. Deixou-se estar e sentiu o calorzinho do sol, novamente fechando os olhos. Quando os reabriu ela não estava mais lá. Paciência.

Voltou à cidade e, com uma fome de touro, sentou-se em um restaurante muito simpático, todo envidraçado, de onde dava para ver uma fonte de água no centro de uma praça. Hesíodo já recomendava aos camponeses, sete séculos antes de Cristo, a sentarem-se perto de um curso d'água no verão, depois da colheita, no momento feliz do descanso. Meu primo ali estava, feliz. Conversava com um padre da igreja ortodoxa, com barbas compridas e um apetite interminável. De repente, surgida não se sabe de onde, ela apareceu. Sentada na beira da fonte. Olhar perdido.

Meu primo temeu a ira dos deuses, que claramente lhe proporcionavam uma segunda chance. Pagou a conta num segundo, abriu a porta e foi na direção dela. Não sabia bem o que iria dizer, isso não importava. Nem precisou pensar em nada. Quando estava perto ela sorriu e disse, em inglês:

- Oi, quer tomar um café?

Pois é, ninguém acredita, mas foi assim mesmo. Ela lembrava dele, óculos escuros, tomando sol na cobertura do palácio, achou que ele fosse italiano. A conversa era fácil, leve, parecia um roteiro escrito há mil anos. Ela estava ali passando férias, na verdade tentando curar as feridas de uma relação que não dera certo. Já estava há quinze dias em Creta, já havia bebido vinho, já havia dançado, quebrado pratos, não sabia mais o que fazer. Meu primo disse a ela que estava retornando naquele dia mesmo, de navio. Ela perguntou se podia ir com ele. Simples assim. Ela buscou as coisas no hotel e à noite embarcaram rumo a Atenas. Meu primo até hoje se lembra dela no convés do navio olhando para ele com os olhos mais bonitos do mundo, os olhos de uma mulher apaixonada.

De Atenas foram a Roma. De Roma ela seguiu para a Austrália, onde morava. Não havia Internet. Meu primo nem tinha telefone. As cartas demoravam duas semanas. Fizeram planos e planos. Se corresponderam por dois anos. Os deuses lhes deram a dádiva de um amor de sonho que vive na lembrança, eterno. Nunca mais se viram.

O grande mistério de Creta? O mesmo da vida, um labirinto sem mapa, onde a cada passo a gente pode ser devorado pelo Minotauro ou encontrar um grande amor.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sete dicas para reconhecer um zumbi

Todo baiano é meio filósofo, assim como todo mineiro é meio sábio (são coisas diferentes). Meu paizinho, que era baiano, de vez em quando voltava de uma conversa dizendo que havia sido "esvaziado". À época, nem eu nem minha irmã entendíamos nada. Claro que papai estava falando dos zumbis. As pessoas que nos sugam, para as quais somos um objeto, um meio, nunca um fim. Eles não querem a gente, querem apenas nos usar. Um zumbi faz um estrago danado. Imagina um exército de zumbis como vemos hoje. Estão por todo o lado. Há zumbis professores doutores explorando seus alunos pra ganhar bolsa de produtividade, político zumbi tem de montão, nem é bom falar, mas tem médico zumbi que examina teu joelho e esquece que o joelho pertence a um ser humano, tem zumbi pra todo lado, se perigar você até já namorou um zumbi e não sabia.

Por isso, o blog autobiografiadosmeusprimos, com enorme senso de dever, tentando ajudar a impedir que os zumbis tomem o mundo e nos mandem para outro planeta, fornece...

SETE DICAS PARA RECONHECER UM ZUMBI

1. Ele adora máquinas e detesta seres humanos

2. Um zumbi só fala de si

3. A coisa mais difícil para eles é um olho no olho mais prolongado

4. A zumbizada sorri sem parar, por nada, só pra "sair na foto"

5. Um zumbi nunca diz estar triste ou conta que algo deu errado, é um sucesso sem fim

6. Zumbi não sabe abraçar direito, beijar então, nem se fala, ele mete a boca mas a alma não vai junto...

7. Zumbi não entende nada de poesia, nem de literatura, embora possa até citar uma coisinha ou outra pra parecer que aprecia, os zumbizinhos se disfarçam bem, os danadinhos...

P.S: É brincadeira, viu? Ninguém é zumbi. Todo mundo é ser humano. Mas uns simplesmente esqueceram de como é ser humano. É duro, mas nós, os "esvaziados" por eles, é que vamos ter que ajudá-los. Mas não se deixem esvaziar, "sai pra lá, zumbi!"

Pior do que uma seta venenosa

Em um debate muito bacana, um filósofo, um físico e euzinho, que não sei bem o que sou, conversavamos com 200 jovens sensacionais em um curso pré-vestibular de São João de Meriti. Uma aluna, de nome Larissa, emociona a todos. Pergunta aos atônitos palestrantes se eles não acham que toda a parafernália eletrônica de celulares, tablets e internet tornou as pessoas mais hostis, mais duras. O filósofo, que não gosta nem de falar ao microfone, reforça a hipótese, sublinhando as alegrias do olho no olho. O físico, muito inteligentemente, lembra que a Idade Média era bem mais hostil.

E eu? Sem saber o que dizer, fico apavorado com a responsabilidade diante daquelas vidas tão vivas ali diante de mim, esperando uma resposta: hostil ou não. Peço ajuda aos deuses gregos que nunca me deixam na mão. E  lanço mão dos sábios filósofos da Velha Guarda da Portela. Digo à Larissa e aos 200 alunos que o que existe hoje não é hostilidade. É bem pior. A hostilidade, o ódio, a violência, de certa forma reconhecem o outro, mesmo que seja como um inimigo.

O que existe hoje é um processo que o velho barbudo que não era Papai Noel já manjou há mais de 150 anos. Karl Marx falava do fetiche da mercadoria. O IPhone vira um ser querido, amado, é ele que olha pra você quando você tira um selfie. Você sorri para a máquina. E os outros seres humanos viram coisas, a serem usadas. Muito pior do que a hostilidade é o desprezo, a indiferença, o não reconhecimento do outro ser humano. Isso não é culpa da tecnologia. Tudo que existe no nosso mundo humano foi construído por um determinado tipo de relações humanas. O modelo atual volta-se para as coisas. As coisas falam, as coisas ouvem, as coisas interagem. Para elas, nosso carinho, nosso bem mais precioso, o tempo. Damos tempo e mais tempo para ter mais e mais coisas. Sobra pouco tempo para outros seres humanos como nós. Eles recebem de nós o desprezo, o pior dos venenos como ensina o samba de Alberto Lonato, "Você me abandonou":

http://letras.mus.br/velha-guarda-da-portela/937706/

Você me abandonou 
Ô ô eu não vou chorar
Mas hei de me vingar
Não vou te ferir
Eu não vou te envenenar
O castigo que eu vou te dar é o desprezo 
Eu te mato devagar
O desprezo é uma arma perigosa
È pior do que uma seta venenosa 
O desprezo para quem sabe sentir
Muitas vezes faz chorar
Outras vezes faz sorrir

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Mais vale um samba na avenida

Era uma vez um professor do Departamento de História da UFF chamado Marcos ... Waldemar de Freitas Reis.

Marcos Waldemar, como era chamado, era de longe o professor mais velho da casa quando meu primo ingressou na instituição, ainda como estudante. De certa forma, eram dois extremos, opostos. Meu primo era disciplinado, metódico, rigoroso, ascético. Estudava muito e amava os gregos antigos, era um bicho de biblioteca, garoto tímido, só se soltava na sala de aula ou no futebol.

Waldemar era boêmio, alegre, divertido, sempre contando uma piada na mesa do bar, cercado de alunos e alunas. Era um mulherengo assumido, adorava contar a história da prostituta grega absolvida pelos juízes diante da sua beleza. Mas não tratava de Grécia, dava aulas de História Regional, sua especialidade era a História do Rio de Janeiro. Adorava levar seus alunos, e também os alunos dos outros, quem quisesse ir, a excursões para fora do Rio, sobretudo para Ouro Preto. Para quem se interessasse, dava explicações históricas. Mas deixava a turma livre para namorar, beber e passear à vontade. Carinhosamente chamavamos aquelas excursões de MarcosTour.

Certa vez, numa das raras vezes em que meu priminho estudante sentou à mesa do bar, Waldemar explicava para uma atenta plateia de admiradores e admiradoras que não se importava de não ter jamais defendido uma tese de doutorado. É que ele era da ala de compositores de uma escola de Niterói, com o sugestivo nome de Combinados do Amor. E pontificou:

- Mais vale ver um samba meu cantado na avenida...

Meu primo, inexperiente e preconceituoso, torceu o nariz. Mal sabia ele que muitos anos depois iria lembrar do grande Marcos Waldemar, um sábio disfarçado de gaiato, que sabia que a vida é sempre maior do que qualquer coisa.


terça-feira, 24 de junho de 2014

O quadrado mágico

Na Copa de 2006 a imprensa brasileira ganhou um factóide de primeira categoria: o quadrado mágico. Era composto por nada mais nada menos que os dois Ronaldos (o gordo e o gaúcho), Kaká e Adriano. Esqueceram de combinar a mágica com Zidane, que deu um show novamente e eliminou o Brasil com sua bola bem redonda.

O meu quadrado mágico é outro, bem mais modesto, embora de fato capaz de operar maravilhas. A sala de aula, mesmo daquelas caidinhas, com carteiras desconfortáveis e nada além de quadro negro e giz, é um quadrado mágico. Porque dentro tem gente. E gente é capaz de quase tudo. 

O professor é o de menos. O importante é a sala de aula ser como a vida: vibrante, som, luz e movimento, sempre, seguindo o velho malandro carioca, nascido no bairro de Éfeso, o tal de Heráclito. A aula não é o que o professor diz e sim o que os alunos entendem. Fazer um círculo, para que todos possam se olhar, para que não haja centro. Para que todos se sintam responsáveis e importantes. O conhecimento não emana de lugar algum, ele é construído coletivamente. 

Claro que existem alguma jogadas-chave. A aula, como um jogo de futebol, deve ser cheia de embates, de disputas pela bola, ou seja, de questões. Até a fala do professor, e aqui cabe soltar a bola o mais rápido possível, deve ser entremeada de perguntas. Elas permitem aos alunos descansar um pouco e concentrarem a atenção no que é importante. É como ajeitar uma bola para bater uma falta perigosa, com todo o estádio em suspense. A parada proporcionada pela pergunta é estratégica. E as perguntas pontuam o que é mais relevante no texto.

A bola deve circular ao máximo. Os alunos devem ser estimulados a participar de uma maneira ou de outra: respondendo às perguntas, fazendo perguntas, lendo trechos do texto, quanto mais gente tocar na bola melhor. Deve-se a todo custo evitar a aula expositiva, sobretudo para resumir um texto que os alunos já leram. O papel do professor não é mais fornecer a informação e sim ensinar a lidar com ela. Tem que mostrar como se lê um texto: identificando os objetivos do autor, os conceitos teóricos que utiliza e por último as palavras-chave. O debate deve dar-se em torno das palavras-chave. Os alunos podem fazer tabelinhas em duplas ou grupos de três, indo ao quadro para colocar as palavras-chave. Feito um bom camisa 8, cabe ao professor distribuir a bola, organizar o time, pensar as jogadas.

Sempre que possível, é necessário abrir a porta do laboratório e lidar diretamente com as fontes primárias, os materiais a partir dos quais os historiadores constroem suas teorias (claro que não é tão simples assim). Documentos de todo tipo: um discurso de Getúlio no Primeiro de Maio, o texto do AI-5, uma charge do Henfil sobre as Diretas-Já. E muitas, muitas fontes literárias, pois não somente são ricas como documento histórico mas proporcionam um exercício de sensibilidade histórica, treinam a capacidade de interpretação. Às vezes só a literatura dá conta de um tema. Falar sobre tortura é uma abstração, mas ler um relato ficcionalizado de quem foi torturado é uma experiência existencial.

De todas as jogadas de efeito, a música é a mais efetiva, ao menos nas aulas de História. Mas não é uma mera "ilustração". A música é um documento histórico e tudo nela pode ser interpretado, o ritmo, os instrumentos utilizados, a melodia, . E a letra também, é claro. A música, quando se usa a versão original, tem uma capacidade de nos transportar no tempo, de nos colocar diante de outra sensibilidade. Batuque na cozinha cantado malemolentemente por João da Baiana, em um ritmo que expressa a malandragem e seus artifícios, sua lentidão estratégica diante de uma modernidade que era imposta a ferro e fogo. Ou o início de Fim de semana no parque, dos Racionais MCs, recriando o clima de terror vivido nas periferias.

Enfim, assim como o futebol, a sala de aula é uma caixinha de surpresas. Desde que o assim chamado professor esteja disposto a ser surpreendido e a aprender mais do que a ensinar. O papel dele é passar bem a bola.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Meu primeiro samba de amor

A cabrocha surgira do nada, como se enviada pelos deuses. Meu primo jura que não queria mais nada além de ver a Velha Guarda da Mangueira, a sua escola de coração. Mas se o seu coração for consultado... Quando notou, ela estava ali, sambando ao seu lado. Depois foi o Paraíso na terra: samba, amor e literatura, pois a cabrocha era letrada, gostava de Balzac e de Cartola, de Machado de Assis e Nelson Cavaquinho. Mas nós somos comedores de pão. Os deuses sorriem e logo depois dão gargalhada da nossa condição.

Ele começou a sentir um descompasso. Ela não dizia nada, mas seus olhos diziam. Um dia, voltando sozinho pra casa, caminhando debaixo de uma chuvinha fina que machucava mais a alma do que o corpo, fez a primeira parte:

Hoje, meu samba
tem nuvem de chuva
lambendo a minha dor

Como não sabia o que estava acontecendo nem o que fazer, continuou:

Hoje, meu samba
caminha me mostrando
aonde é que vou

E parou por aí. Ficava cantarolando o samba, ouvindo ele na cabeça e pensando como terminar. Mas não vinha mais nada, nadinha.

Até que veio o dia tenebroso. Foi depois de uma roda de samba. Vieram para a casa do meu primo. Ela, calada. Dormiram em silêncio. Ao amanhecer, o corte. Seco. Não havia o que discutir. Ela saiu pela porta do chatô, meu primo em estado de choque. Mas assim que a porta fechou, como se fosse um milagre veio o final do samba, quem sabe um novo presente dos deuses:

Meu samba,
hoje é feito de tristeza
Mas ele tem a nobreza
de viver um grande amor

Meu samba é para ti
minha querida
uma flor na despedida
daquele que te amou

Pois é. Uma amiga que está em Paris viu num muro assim: "O Amor está morto". Caminhou mais um pouquinho e na mesma rua, em outro muro: "Viva o Amor".

Por isso, preferi chamar o meu primeiro samba de amor de "Nobreza".

Pra quem quiser ouvir esse boi-com-abóbora, tá aqui: Nobreza














domingo, 22 de junho de 2014

Brinquedo de menina

Ao contrário de muitos pais, fico chateado por ninguém dar bola para a minha filha. É uma menina linda, saudável. E o único a jamais ter dado uma bola a ela em sete aniversários fui eu. Várias, aliás: de borracha, bem pequenas, bem grandes e até uma imitando couro e de tamanho oficial. Se nasce um menino é um festival de camisas de clube e o moleque já nasce cercado de bolas pra todo lado. Mesmo em ambientes intelectualizados, pretensamente livres de preconceitos de gênero: quem é que dá uma bola de futebol a uma menina de presente?

Pois fiquem sabendo que elas gostam muito. Tive a alegria de ter duas meninas aqui em casa por alguns dias: minha filha e sua prima, da mesma idade. De brincadeira, como deve ser, propus treiná-las no campo existente no condomínio. Como conduzir a bola, passe, chute. Coisas simples. Mais que um menino da idade delas já fez zilhões de vezes. No colégio bicho-grilo (no bom sentido) em que minha filha estuda, se dependesse dos meninos ela jamais jogaria bola no recreio. Ela e as amigas têm que pedir ao inspetor. E é claro que sofrem aquela pressão ancestral dos meninos, repetindo a frase idiota: "futebol é coisa pra homem".

Não é não. Em cinco dias de treino elas já estão passando direitinho e os chutes saem cada vez mais fortes. Pedi que chutassem com raiva, pensando nos meninos que acreditam que elas nunca vão jogar bem. Passaram a exigir duas sessões de treinamento por dia. Já começaram até a bater na orelha da bola, dando efeito. E tudo com uma alegria que parecia reprimida, guardada. Agora os olhos brilham vendo os jogos da Copa, prestando atenção na maneira com que os jogadores batem na bola. Pois a bola pode e deve ser brinquedo de menina.

Além de tentar privar metade da humanidade das delícias do futebol, há o reforço dos papéis de gênero e da ideia de que meninas são frágeis e meninos fortes, ou seja, um horror. Portanto, vamos dar bola para nossas filhas e para as filhas dos outros também. No bom sentido, pessoal, no bom sentido.

A recompensa

Era um primo muito estranho. Nunca chegava atrasado ao trabalho. Nem um minuto. Faltar havia faltado, algumas poucas vezes. Para casar no dia seguinte. Para ir ao funeral da avó. Quando a dengue quase o matou ou em um dia em que sua garganta era um mar de pus. Mas ninguém é de ferro. Ninguém é super-homem (ou super-mulher). E depois de vinte e sete anos, meu primo ficou doente pra valer. Teve que pedir uma licença-médica. Chorou de desespero no dia em que deveria estar em sala de aula, no início do que seria o seu 55o. semestre como professor naquela universidade. E era um curso sobre samba.

Ele nada podia fazer. Apenas seguir as instruções médicas. Tomar o remédio e esperar. Melhorou. Mas ainda não tinha forças e condição de retornar. Começou a caminhar na praia. Primeiro muito lentamente. Robustos e sarados senhores de 80 anos passavam por ele como se fossem carros de Fórmula Um. Mas lembrava do pai dizendo, com um sorriso de alegria:

- Não está morto quem caminha

A cada dia, caminhava mais. Voltou à academia. Foi novamente examinado pelo serviço médico da universidade. O doutor percebeu que ele melhorara e lhe deu somente mais um mês de licença. Ele achou otimista demais. De qualquer forma, aceitou.

Ia se aproximando o semestre seguinte. No dia aprazado, apresentou-se ao chefe do seu departamento. Avisou que estava de volta ao trabalho. Morando longe da universidade, tendo que utilizar três transportes para ir e mais três para voltar, estava um pouco temeroso. Sem dar detalhes, explicou a situação e fez um pequeno pedido, o primeiro em quase três décadas. Gostaria de voltar aos poucos, lecionando apenas uma disciplina, antes de lecionar as duas disciplinas habituais no semestre seguinte. Sem titubear, seu colega negou esta possibilidade de forma seca e direta:

- Todos têm seus problemas

Ele não retrucou. Na verdade, lamentou ter pedido, ter se colocado naquela posição.

Voltou à sala de aula para dar os dois cursos que lhe atribuíram naquele semestre. Ali, descobriu que a doença não lhe havia tirado nenhum pedaço. Que diante dos seus alunos continuava inteiro. Na sala de aula era um peixe dentro d'água, nadando feliz. Essa era a sua recompensa, sempre fora e continuaria sendo. Não precisava pedir nada a ninguém.

A cultura tem que ir aonde o povo está… na Internet

Nos últimos anos, tenho acompanhado direta ou indiretamente, como palestrante, mediador ou plateia, uma série de projetos culturais. Numa saudável democratização, hoje eles alcançam os quatro cantos do país e são realizados não somente em auditórios luxuosos, mas também em centros culturais de favelas e bairros da periferia. Maravilha. Outra característica:  são projetos profissionais, com financiamento público e privado, pagamento digno aos palestrantes e contratação de técnicos especializados. Microfones, filmadoras, material de divulgação, tudo de primeira qualidade. Uma beleza. Costuma até ter camarim com lanchinho.

Seria uma perfeição se não fosse um pequeno detalhe: quase ninguém vai assistir. Quando vai, é uma turma de adolescentes arrebanhados em cima da hora, que caem de pára-quedas sem saber bem o que estão fazendo ali. E nem mesmo adianta chamar celebridades. Vi uma famosa cantora de axé falar (muito bem) diante de uma audiência de 20 pessoas, em Salvador! Claro que sempre vale, nossa alma não é pequena. Mas, sinceramente, não é justo gastar tanto dinheiro para isso. Há milhares e milhares de pessoas interessadas no tema daquele debate ou daquela palestra. Mas não estão ali. Os jovens, sobretudo, estão na rede, no Twitter, no Facebook, no Youtube… E nas escolas, onde seus professores poderiam dispor desses ricos materiais em suas aulas.

Aí vem a principal falha de todos estes projetos, pelo menos de todos que conheci. A filmagem é realizada do início ao fim, nos mínimos detalhes. Mas não há transmissão simultânea, coisa que pode ser feita com um simples celular e um programa gratuito (Twitcaster). Ninguém prepara um simples podcast (programa de rádio gravado) com os melhores momentos das falas. Não são feitos pequenos filmes para colocar no Youtube, o que qualquer adolescente sabe fazer. Anos depois, o material completo do evento ainda não se encontra nos sites oficiais. Os palestrantes se sentem frustrados. Felizes por participar de um projeto desta natureza, mas tristes diante de uma oportunidade tão rica que está sendo desperdiçada. Se o projeto é feito, mesmo que parcialmente, com dinheiro público, tem como obrigação estar disponível ao público.

Já está na hora dos projetos culturais desembarcarem no século XXI. Hoje não custa nem mais um centavo para a cultura ir aonde o povo está: na Internet.

sábado, 21 de junho de 2014

O valor da guerra

Em um ato de deliberada desobediência civil acadêmica, não frequento mais a Plataforma Lattes, a senzala eletrônica dos pesquisadores brasileiros. Há dois anos ouso escrever, publicar e até ir ao cinema sem bater cabeça para a vigilância do CNPq-Casa Grande.

Como sabem, prefiro não fazê-lo.

Essa é a primeira etapa.

A segunda, após a minha abolição pessoal, se os deuses forem bons, será simplesmente apagar todos os meus vestígios junto à burocracia produtivista.

Sem lenço, sem documento e sem currículo Lattes.

Vou viver a vida que resta, agradecendo aos deuses por tudo e torcendo para que continuem bons.

Uma declaração de guerra? Claro que sim. É uma guerra necessária.

Éfeso, que ficava na Zona Norte da Grécia antiga, produziu um malandro carioca da mais fina estirpe, um tal de Heráclito. O pai do gingado dialético já mandava essa letra no seu estilo incomparável:

"A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres."

Ou ninguém ou todo mundo

      A história aconteceu ainda no selvagem século XX, desprovido do políticamente correto. Aluno com dificuldade de aprender era burro e outras variações do humano atendiam pelos nomes de surdo, cego, mudo e, a mais dura delas, retardado mental, ou apenas retardado, para os íntimos.

      Corta para o prédio de classe média de Botafogo onde meu priminho passou sua infância. Ali havia um menino gordinho, ruim na corrida, péssimo no futebol e meio bobão. Todo mundo sabia disso e é lógico que era alvo de muitas brincadeiras, ninguém tinha pena dele não. Mas os meninos mais velhos, inclusive meu primo, também não deixavam ninguém bater nele ou fazer maldades. Da mesma forma que não deixavam isso acontecer com outros meninos menores. Era uma turma bacana.

      Muitos anos depois, meu primo reencontrou o tal menino, agora um homem, mas ainda vivendo na casa e na barra da saia da mãe. E ali teve um estalo. O tal menino tinha dificuldades sim. Mas a mãe, muito antes dessa maravilhosa onda de reintegrar ao humano tudo que é humano, tinha tido uma ideia corajosa. Sem dizer nada a nós, nem a nossos pais, deixava seu filho ali no meio de outras crianças como uma criança "normal". Porque ele era uma criança do mesmo jeito que os outros. Afinal todos tinham as suas dificuldades. Tinha um que soltava peidos no elevador e antes que alguém o acusasse ficava vermelho e negava tudo: "não fui eu, não fui eu". Tinha outro que adorava brincar com insetos, incluindo aquilo que o Titãs muito tempo depois iria batizar de "bichos escrotos". Tinha um com uma cabeçorra magnífica. E todo mundo achava que ia ser jogador de futebol, meu priminho era um. 

      Ou seja, já naquela época, ou todo mundo era normal ou ninguém era.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A dor que o samba não cura...

História difícil de contar. Dói até hoje. Meu primo casa, tem um filho e se separa. Mas não do filho. Eles eram tão próximos que meu primo comprou seu primeiro telefone celular só para atender o filho a qualquer momento. Aos quatro anos de idade a saudade é pedreira. Pra variar, meu primo tentou o samba:

- Filhote, quando estiver com muita saudade e não puder falar com o papai, canta assim:

Tristeza,
por favor vá embora,
minha alma que chora
está vendo o meu fim

fez do meu coração
a sua moradia
já é demais 
o meu penar

quero voltar
àquela vida 
de alegria
quero de novo sambar

láláialá

Parecia estar funcionando. Pois bem. Um dia, em meio a uma interminável reunião, telefonema do filho. Decide atender. Do outro lado, aquela vozinha de criança obediente:

- Pai, já cantei aquela música três vezes, só que a tristeza não foi embora...

Branco total na memória. Não consigo lembrar da resposta do meu primo. E havia alguma?

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Meu primo faz a Sena

Creio que o século XX já ia pelas tabelas. Meu primo já havia trazido seus gregos para dialogar com Cartola. Agora tentava dar aula de História do Samba. O curso estava abarrotado, tinha ouvinte, visitante e até aluno regularmente inscrito. Contava com duas japonesas, originais de fábrica, que juravam saber sambar e sair em uma escola de Kioto, que não fica na Baixada Fluminense. As aulas teóricas eram bacanas, começando com as festas negras do século XVIII, mistura maravilhosa de sagrado e profano. Mas logo no primeiro dia de aula meu primo colocou no quadro os versos de Noel para servirem de alerta: "Batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio".

Sendo assim, havia que sair a campo, ir ao samba. Ou melhor, ir aos sambas, no plural. O samba carioca vivia um momento especial em mais um dos seus eternos ressurgimentos. Teresa Cristina cantando de olhos fechados no minúsculo palco do Semente. A maravilhosa roda aberta da Rua do Mercado no centro. Outra da melhor qualidade na Joaquim Silva. Galloti às terças no Severina. A inesquecível roda da Troça no alto, bem no alto de Santa Teresa. Parodiando Wilson Batista, gastava-se pouco e era divertido.

Foi aí que veio a ideia, sem dúvida soprada pelos deuses. Que tal fazer a Sena? Não aquela montanha de dinheiro, pois Paulinho já dizia que dinheiro na mão é vendaval. A Sena de batuqueiro é outra. Consiste em ir seis noites seguidas ao samba. E assim foi. Seis sambas de enfiada. Nada de porres homéricos ou varar toda a madrugada. Mas seis noites seguidas sambando. Foi divino. Lavou, enxaguou e colocou a alma para secar ao sol da alegria. Poderia ter havido um sétimo dia, é verdade. Mas meu primo ficou desconfiado, teve medo da hybris, do excesso que os deuses punem. A Sena já estava de bom tamanho.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A história do baiano enigmático

Meu pai agora mora dentro do meu peito. E na memória. Era um baiano enigmático. Gostava de cantar certas músicas que agora, pensando bem, acho que formavam uma narrativa, uma filosofia própria. A que ele repetia como um mantra era de um professor de biologia, paulista e sambista, o maravilhoso Paulo Vanzolini:

"Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima"

Mais tarde, disse a meus filhos que, se tivessem que aprender a cantar um único samba, que fosse esse.

Papai insistia em contar e recontar certos incidentes, sem nos alertar que ali estavam escancarados os seus princípios de vida. Como o ligeiro erro gramatical mas enorme acerto existencial da frase do sargento Velécio, nos tempos do cabo de guerra:

"Ou adapita-se ou morre"

No fim da vida, quando metade do seu coração já não batia, a outra metade batia em dobro. Viveu anos além do que a lógica médica poderia supor. Sem uma reclamação. Sempre sorrindo e a cada dia mais carinhoso, mas sem chororô. Na hora da onça beber água, sozinho em casa com uma empregada muito bacana e querida, não a deixou chamar a ambulância. Sereno, pediu apenas que ela segurasse a sua mão. Deixou como dádiva a coragem e a serenidade.

Só que eu não queria contar como ele morreu. Queria contar como ele viveu. Órfão de pai aos dez anos, estudou em um colégio interno em Petrópolis. Como o refeitório era pequeno, tinham tempo marcado para comer. Toda a vida ele comeu a mil por hora, como se a qualquer momento fossem lhe tirar o prato. E quando reclamavam da sua gulodice, ria e dizia: "É fome velha". Na adolescência, trabalhava como representante comercial de uma margarina, batendo pernas pelo Rio de Janeiro afora de padaria em padaria. Ao final do dia, lembrava, ia até uma biblioteca, contava o dinheiro, inclusive as moedas, e estudava um pouco antes de seguir para o colégio noturno. Nessa época ele era chamado de Zé Carioca, pela morenice, pelo nariz imponente e sobretudo por seu bom humor e dotes de batuqueiro. Chegou a ter um conjunto de samba com os amigos. No fim da vida, já debilitado, ainda tocava tamborim com ritmo e precisão cirúrgica. Para fazer veterinária na Rural, trabalhava na Biblioteca. Foi ainda estudante que conheceu minha mãe e o resto é história.

Mas e quanto ao enigmático? Bem, isso é o mais bacana. Muitas vezes, no jantar, com a família toda reunida, de repente nosso pai desatava num riso, que começava com um sorriso irônico e desabrochava numa gargalhada gostosa, sonora. Primeiro ficavamos perguntando a ele o motivo. Inutilmente. Ele fingia não ouvir e continuava a rir. Depois, ninguém aguentava e a mesa toda estava gargalhando sem saber o motivo. Aos poucos ele ia se acalmando, retomava a respiração normal e continuava a jantar. Não dizia uma palavra, nada como "depois eu conto" ou "mais tarde eu explico". Nenhuma vez agiu diferente. Quando eu me lembro dele, é a coisa que eu mais gosto de recordar.

Sei que todo o enigma do meu pai reside naquela gargalhada. À medida em que vou tendo mais e mais primos, reflito sobre o significado daquela explosão de alegria repentina, sem motivo aparente. Acho que é a mensagem que ele queria deixar para sempre gravada. De que ele ria? Ria da vida. Ria por estar vivo. Porque essa é a hora.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Jornalismo Miojo

Amigo de um amigo, importante jornalista, que trabalha em uma agência internacional poderosa, me manda um email. Aflito, tendo que escrever uma história para o dia seguinte sobre a questão racial no Brasil, queria me entrevistar por 15 minutos. E manda uma lista com meia-dúzia de perguntas que estamos todos tentando responder há séculos. Mas não se preocupem, as perguntas dele já vinham com resposta e tudo. As respostas dele, é claro. Para eu dar as minhas, vou ter que pensar mais um pouco, sem pressa, porque são questões importantes demais. Que tal na  Copa do Qatar ? Acho que com aquele calor todo os jogos hão de ser muito modorrentos. Ou então vai ser a primeira copa jogada no ar condicionado. Sobre isso eu poderia falar uns quinze minutos, fácil, fácil...

É o jornalismo miojo: você acha em qualquer biboca, fica pronto logo e já vem com o molho da sua escolha

domingo, 15 de junho de 2014

Quando a morte chegar...

Quando a morte chegar, espero poder olhar bem nos olhos dela e dizer com um sorriso: chegou tarde, bobinha, agora eu já vivi 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Os deuses são bons, Pindorama...

A bem da verdade, o jogo começou um dia antes, no sábado. Em dois bancos de madeira, frente a frente, os alemães do Autonama e os brazucas do Pindorama. Cada escritor, um texto. Os trabalhos foram abertos pelo imponente e clássico meio-campista Christoph Nussbaumeder, que por motivos linguísticos vamos chamar simplesmente de "o número 6 do Autonama". Pois bem, ele fez uma tabelinha maravilhosa com o craque e cérebro do time, Klaus Döring, que pelos mesmos motivos e por conta da vasta cabeleira de bruxa foi por nós apelidado carinhosamente de Valderrama. O texto se chamava "O coração futebolístico", um diálogo absolutamente delicioso entre um jogador e sua amada, que acaba por descobrir que o coração do seu homem (e não só o dele) tem o formato de uma bola. Todo mundo riu, era um texto encantador. Mas o Brasil empatou com um texto tão classudo que se fosse bola seria uma falta cobrada por Zico lá no ângulo. Nosso camisa 13 Gustavo Krause cantou "Os filhos de Pindorama", em que imagina os nativos da Terra das Palmeiras roubando uma bola de meia "dos homens do barco grande", aos quais eles resistem "com nossas palavras de rio, com nossas divindades de nuvens." Golaço. Até aí, um a um.

No dia seguinte, o glorioso domingo de sol de 8 de junho de 2014, o Pindorama FC, a seleção brasileira de escritores, tinha a difícil tarefa de resistir à poderosa esquadra alemã do Autonama, o Deutsche Autoren Nationalmannschaft, pra facilitar a seleção alemã de escritores. Os caras são grandes, rápidos, bem treinados, organizados e vencedores. São campeões do campeonato europeu de seleções de escritores, por enquanto a única competição desse tipo no mundo. Eles existem há 7 anos e são treinados por uma lenda do futebol profissional alemão, o ex-jogador Jimmy Hartwig. Ainda por cima escrevem muito bem, são simpáticos e educados. Não deixaram de ser gentis nem mesmo quando encaçaparam nove gols na gente em Frankfurt. No encerramento dos trabalhos do sábado, um dia antes do jogo, fiz questão de agradecer a eles o respeito e o carinho conosco, mas avisei:

- Se ganharmos de vocês não vamos ser tão respeitosos, vai ser um carnaval. Porque vocês são um grande time.

Na ida para o jogo, um show de Edvaldo Santana, Junião e deste modesto escriba. Teve samba, forró e o escambau. Os autonamas cantaram umas baladas alemãs e capricharam no lálálá. Podem não ter muito ritmo mas são afinadinhos. Congraçamento geral, ma non troppo. Quando chegamos perto o técnico deles avisou, agora não é mais hora de música, vamos nos concentrar no jogo.

No vestiário, o grande Betão Meireles, com toda a calma e segurança, depois de explicar didaticamente o que cada um deveria fazer, faz apenas uma pergunta:

- Tem alguém aí achando ser impossível ganhar deles? Se vocês acharem isso é melhor a gente nem entrar em campo.

Bem, corta pra hora do jogo, times perfilados, emoção geral. O belíssimo, melódico, equilibrado e harmonioso hino nacional alemão. Depois o nosso descontrolado, furioso, apaixonado e mentiroso hino nacional: "dos filhos desta terra és mãe gentil"? Só que na hora, meu, como dizem meus irmãos paulistas, o coração bate mais forte e você canta feito Pavarotti depois de papar uma macarronada. Tudo pronto, juíza da Federação Paulista, duas bandeiras e uma quarta árbitra a postos. Uma enorme multidão de umas 70 pessoas assistindo, cobertura da imprensa nacional e internacional e até o cônsul da Alemanha presente. Só faltava a bola rolar.

E como rolou. Pindorama, como na música do grande biólogo e compositor paulista Paulo Vanzolini, levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Começou bem postado, tocando a bola, sem chutão, sem afobação. O time alemão sentiu, não esperava aquilo. No meio de campo, Bith, Junião e Custódio mordiam cada palmo de grama como se estivessem defendendo a mulher amada de um dragão maligno. Celso Campos, na lateral direita, parecia ter dois pulmões, defendendo e atacando com furor. Moutinho fechava a porta na lateral-esquerda. Rogério era o soberano da área e Vladir não deixava o perigoso Moritz Rinke pensar em tocar na bola. Tínhamos alguma dificuldade no ataque, a bola não chegava no nosso craque Flávio Carneiro e Otávio jogava sem ter ninguém para tabelar, sendo parado com faltas pelos alemães quando tentava jogadas individuais. Mesmo assim chegou a ter uma chance de gol. Rodrigo Metroviário Viana era o homem-surpresa e fez boas tabelas com Celso. A defesa deles é muito boa e o Autonama joga bem fechado. Além disso, são rápidos no contra-ataque e o camisa dez deles (é melhor nem dizer o nome pra não quebrar queixo de ninguém) é uma espécie de Neto germânico, metia a bola aonde queria com sua canhotinha. Cada escanteio era um perigo. Mas no gol tínhamos Julio Muralha Ludemir, que acabou por se contundir ao sair corajosamente do gol e dividir uma bola com um alemão duas vezes maior do que ele. Teve que ser substituído por Marcos Yashin.

Termina o primeiro tempo zero a zero. Para nós, já era uma vitória. Oito meses atrás, naquele campo gelado de Frankfurt, a esta altura já estávamos perdendo de 5 a 0 e ninguém do nosso time sabia dizer se a bola era branca, azul ou cor de rosa. Tudo havia mudado. Nosso técnico teve que mandar o time sentar antes da preleção. Tava todo mundo em pé, ligado, aceso. O sonho impossível de ganhar deles parecia ao alcance da nossa mão, ou dos nossos pés.

A seleção alemã voltou bem melhor na segunda etapa. Trocaram alguns jogadores, baixaram a média de idade e ameaçaram ganhar o meio-de-campo. Eles tiveram duas boas chances. Uma na bola parada, que Marcos Yashin colocou para escanteio. A outra foi bem mais dramática: a bola sobrou toda saltitante para o arremate de um alemão quando o gigante Marcos esticou a perna com vontade e manteve o placar virginal. Nosso técnico mexeu no time para ganharmos mais fôlego e deu resultado. Reequilibramos a batalha no meio de campo e rondamos o gol alemão. Flávio começou a receber mais bolas e o nosso camisa sete, quando a bola está no pé, deixa de ser o tranquilo e talentoso escritor para virar um atacante infernal, difícil de marcar. Primeiro chutou uma bola quase roçando o poste esquerdo dos teutônicos, arrancando aquele tradicional úuuuuu da linda torcida pindorâmica presente no local. Depois, o lance do jogo. Mas deixa eu pegar um fôlego primeiro antes de contar.

Breque. Faltando dez minutos entra o artista Edvaldo Santana. Músico, compositor e craque de bola. Àquela altura ele era o jogador mais velho em campo, com seu possante motor 5.8. Um pouquinho roliço, nosso malandro da periferia não pareceu ter pinta de jogador de futebol para os impiedosos marcadores do Autonama. Logo um partiu resoluto na direção do nosso showman. Edvaldo protegeu a bola com seu corpinho, girou pra lá e pra cá e saiu com a bola no pé feito mágico quando tira coelho da cartola. Veio outro alemão, ainda com mais fome. Edvaldo também botou pra dançar, com todo o respeito. O terceiro já veio com sede de vingança. Deve estar procurando a bola até agora. Sabe onde ela está? Não está mais com Edvaldo, ele a lançou para Flávio Carneiro, o camisa sete balançou o corpo e meteu um balaço. Na trave!!!! A bola sobra para José Luiz Tahan. Tá lá o corpo estendido no chão, é o goleiro alemão. O gol aberto, a felicidade batendo à nossa porta, a bolinha pedindo, vai, vai... Tahan mete o pé, a bola descreve uma trajetória inesperada, por cima da trave... Se fosse futebol americano...

Mas isso aqui é futebol. Onde tudo pode acontecer. Onde um empate de zero a zero pode ser justo. Pode ser lindo. Pode ser até melhor do que uma vitória. Porque o empate calça as sandálias da humildade. Porque o empate nos lembra que o nosso objetivo não era derrotar os Autonamas. O nosso objetivo era fazer o melhor e sair de campo de cabeça erguida, sem ligar pro resultado.

Certa vez um primo meu foi convidado por seus alunos para pescar. Ele topou mas avisou que nunca havia pescado na vida. Eles disseram que não tinha importância nenhuma. Que pegar peixe era o de menos, o bacana era ficar lá batendo papo, bebendo, comendo e brincando. Se é assim, disse meu primo, eu vou. Foi até uma loja de pesca e pediu material completo: vara, anzol, molinete... Explicou a situação para o vendedor, dizendo que ia mais pela farra, nem se preocupava em voltar com peixe ou não. O senhor que o atendia para tudo e o olha de forma muito séria:

- Não diga isso.
- Por que?
- O senhor não sabe quais são as três melhores coisas do mundo?
- Não sei, não senhor
- A primeira é pescar pescando... se o cara tá lá tem que voltar com peixe
- OK
- A segunda é comer bebendo... comer sem poder beber não é a mesma coisa
- Ótimo, e a terceira?
- A terceira é fuder beijando... porque não há nada igual à mulher amada

Hoje, muitos anos depois daquela conversa, eu ousaria acrescentar uma quarta coisa dentre o que há de melhor nesse mundo. Jogar jogando. Fazer o máximo e depois ver que bicho dá. Nós eramos um bando de escritores típico: idiossincráticos, um "pouco" narcisistas, meio briguentos, orgulhosos. Tomamos um misericordioso nove a um (podia ter sido de treze ou quinze) e calçamos à força as sandálias da humildade. Beto Meireles, nosso técnico, fez de nós uma equipe e conseguiu em apenas dois treinos nos dar uma noção de organização. Nosso capitão, Custódio Rosa, foi incansável para nos proporcionar uma maravilhosa estrutura de treino e jogo. Todos deram tudo de si, em seu nome e pelos seus companheiros, forjamos uma fortaleza feita de bola, literatura, alegria e sobretudo amizade. Pois como já dizia o velho Marcel Mauss, camisa dez da antropologia, quem presenteia dá um pouco de si, acaba por se misturar ao outro. Algo que os funkeiros cariocas resumiram sabiamente no adágio "juntos e misturados".

Pois lhes digo uma só coisa mais. Não sei se doravante o Pindorama vai ganhar, perder ou empatar. Eu só sei que depois do inesquecível oito de junho de 2014, quando vocês virem um bando de barrigudinhos, carequinhas, gastos pela vida, meio estropiados, já em pleno segundo tempo da existência, não podem mais dizer que é um bando de escritores querendo formar um time. Agora nós somos, de direito e de fato, o Pindorama Futebol Clube.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Paz, amor e rapadura

Minha turma amada de Bruzundanga III é que me inspirou essa reflexão na aula de ontem. Professor deve tratar a turma como uma namorada. Antes de mais nada, deve seduzi-la, o tédio é crime inafiançável. Deve tratá-la bem, com educação e gentileza. Deve ouvi-la sempre. Dialogar o tempo todo. E estar sempre disposto a discutir a relação rs. Há que olhar olho no olho e ouvir a intuição. E surpreender sempre, de manhã, de tarde e de noite, porque amor de verdade é sempre novo, é sempre vivo.

Presentes, claro, muitos presentes, para demonstrar e ritualizar o afeto. E pelo gosto de ser generoso, de dar e dar-se todo. Mas o principal presente é usar o método rapadura, aquela que é doce mas não é mole não. Ajudar os estudantes a perceberem que são profissionais em formação. Que têm que trabalhar duro. Trabalho conjunto e individual. Horário é fundamental, assiduidade também, por mais careta que isso pareça. Se você chega atrasado sua namorada tem direito de se zangar. Se você falta aos encontros também. Como é que a relação vai se desenvolver desse modo? Como é que você quer pegar uma conversa pelo meio e entender do que se trata? Você fala com sua namorada e brinca de celular? Se queremos que nossa profissão seja respeitada precisamos respeitá-la. O coração do respeito é a reciprocidade. Professor não pode cobrar presença se vive faltando, nem fazer chamada se chega atrasado. E não pode passar trabalho se não for corrigir com atenção e carinho. Fazendo isso, pode cobrar feito segundo sargento do Exército. É preciso ter rebolado dialético pra ser duro e doce ao mesmo tempo.

Trabalho sim, mas este também pode ser prazeroso. Neste semestre, ao invés de responderem às tradicionais questões que normalmente pedem que eles resumam o texto que eles já leram e que o professor já explicou em sala, partimos pra travessura, pra brincadeira. Cada trabalho era um desafio. Fazer um poema sobre a Primeira República. Teve gente que tirou de letra e até caprichou na métrica. Houve quem respondesse em cordel, uma belezura. Uma conversa entre Getúlio, um industrial, um operário sindicalizado e um malandro? Moleza. Nem foi dificil também imaginar uma conversa entre Lacerda, JK e Jango sobre o golpe de 64. As imaginações, bem fundamentadas pelas leituras, correram soltas feito cavalos selvagens de comercial de cigarro de antigamente. Conceitos: bem acima da média. Em um questionário, a maioria dos alunos disse que teve que estudar mais, mas que teve mais prazer. E como diria Assis Valente:

Alegria,
pra cantar a batucada,
as morenas vão sambar
quem samba tem alegria

Minha gente,
era triste, amargurada,
inventou a batucada,
pra deixar de padecer,

Salve o prazer!
Salve o prazer!

Não há milagres. Só trabalho. É dureza. Mas quem já provou da rapadura sabe que ela é doce, doce, doce.

(Este modesto textinho é dedicado a duas turmas que conseguiram o impossível: me fizeram gostar de dar aula de Brasil III. Salve turma Rebolado Dialético de 2013-02 e salve turma Bruzundanga de 2014-01!)

Meus primos idiotas, parte 3

As idiotices foram e são tantas que fica difícil de escolher. Essa foi espetacular. Meu primo, em sua fase mais radicalmente libertária, resolve dar um curso totalmente "livre". Aceita uma turma com 80 alunos, gente pendurada até no lustre. Programa trabalhos, mas só para quem quisesse fazê-los. Não haveria cobrança de presença, chamada nem pensar. A avaliação e a nota ficariam a cargo dos próprios alunos. Sabe aquela coisa do copo meio cheio, meio vazio dependendo da sua visão? Os pessimistas diriam que 90% da turma não fez trabalho algum. Os otimistas diriam que apesar de tudo, 10% da turma continuou a fazer os trabalhos, por livre e espontânea vontade. Claro que foi um curso muito popular.

A auto-avaliação foi um show. Havia regras sim. Tinha que ser feita oralmente, diante da turma e do professor. Antes de dar sua nota, o aluno ou aluna tinha que explicitar seus critérios e o peso qualitativo de cada um deles: presença, participação, feitura ou não dos trabalhos, interesse e tudo o mais que fosse considerado relevante. Depois, tinha que dizer em alto e bom som a sua nota. Era de nove pra cima na maioria das vezes e uma boa parte da turma se outorgou dez, nota dez. Inclusive um aluno que só havia ido na primeira aula e que na frente de todos desenvolveu um interessante raciocínio, em uma lógica que faria Aristóteles sair da tumba e dar um triplo salto mortal:

- Eu abandonei o curso. Claro que eu deveria me reprovar. Mas não vou me reprovar, não é? Por isso, vou me dar dez.

Nessa hora, o filhinho do meu primo, que devia ter lá uns sete ou oito anos, olha para o pai e arremata de primeira:

- Pô, pai, não aguento mais esse teatro.

Mas nem tudo estava perdido. Havia uma aluna que frequentava todas as aulas, debatia, perguntava, lia os textos e fazia todos os trabalhos. Quando chegou a vez dela, a surpresa. Depois de explicar calmente os seus critérios, outorgou a si própria um modesto oito e meio. Diante do espanto e até da indignação dos colegas, ela respondeu com tranquilidade:

- Eu me dei oito e meio sim. Sei que fiz um bom curso, mas acho que posso fazer coisa bem melhor.

Silêncio geral. Sem levantar a voz, ela havia desnudado a farsa e colocado o dedo na ferida com vontade. Porque muito pior do que enganar um professor trouxa é enganar a si próprio.

Do malandro-otário que se deu dez eu nunca mais ouvi falar. A aluna sincera fez mestrado, doutorado e numa carreira relâmpago hoje é colega do meu primo, dá aula em uma universidade federal do Centro-Oeste. Mesmo que tardiamente, a nota dela é dez.

Meus primos idiotas, parte 2

Esse primo passou na prova para professor da rede estadual. Foi para uma escola no centro de Campo Grande, trabalhar no turno da noite. Na primeira vez foi de trem, para tentar avaliar como era ir, voltar, trabalhar e chegar à noite na escola para assistir aula. Apenas para ir, fora do horário de pico, já era de matar. O diretor olhou para ele de cima abaixo, deduziu a inexperiência da carinha de garoto e não teve coragem de escalá-lo para dar História. Ficou com seis turmas de O.S.P.B., Organização Social e Política do Brasil. Como a Constituinte de 1988 já apontava no horizonte, decidiu trabalhar as constituições brasileiras com as turmas. Na teoria, ótimo.

Acontece que esse primo, enquanto professor, estava um bocado cru. Acreditar em discos voadores, duendes e lobisomens é perfeitamente normal, mas acreditar na eficácia de aulas expositivas é dose pra leão. Ele preparava sua aula meticulosamente e a apresentava, tintin por tintin, para cada uma das seis turmas de 50 alunos que lhe cabiam. Distribuía folhas com resumos, chegava na hora, saía na hora, enfim, se dedicava ao máximo. Muitos alunos, educadamente, fingiam prestar atenção. Outros, menos resistentes, faziam, digamos, um protesto silencioso: dormiam. Meu primo, com uma pontinha de bom senso, pedia que não fossem acordados. Mesmo idiotas podem ter respeito pelos sonhos alheios.

Parêntesis para a sala dos professores. Meu primo passou a não frequentá-la mais. Durante os intervalos, ia para um cantinho da cantina comer seu sanduíche quietinho, esperando tocar o sinal. É que o clima entre os professores era deprimente. A desesperança era muito grande e o conformismo, seu irmão, também. Ele viu professores se referirem a alunos de forma no mínimo desrespeitosa, fazendo julgamentos morais do tipo:

- Viu a minissaia da fulana, qualquer dia aparece de barriga e depois reclama...

ou

- Sicrano nunca vai aprender, não adianta tentar ensinar

E por aí vai. Meu primo, idiota ou não, estava vivo. E ali era a terra fantasmagórica das almas mortas.

Voltemos à sala de aula. Vem a primeira prova. O resultado foi pífio. Experientes no assunto, 300 alunos haviam colado com maestria, só que de alguém que não havia estudado... Meu primo ficou furioso. Tanta dedicação, todo aquele trabalho, tivera como contrapartida uma atitude que ele considerava um desacato. Para cada uma das seis turmas ele repetiu uma descompostura exemplar. Quase esteve a ponto de se igualar a alguns frequentadores da sala dos professores. Quase os chamou de burros por terem "colado" de alguém que fizera uma péssima prova.

Como os deuses são bons, vieram as férias. Meu primo, ânimos acalmados, se pôs a pensar. Trezentos alunos estava errados e só ele estava certo? Não podia ser, havia algo de errado ali. Decidiu mudar tudo. Adeus aulas expositivas. Adeus folhinhas sérias e bem comportadas. Resolveu lançar mão de armas poderosas: humor e arte. Preparou cartolinhas onde colocou a fotocópia de dois livros de história do Brasil em quadrinhos. Duas maravilhas escritas por Lilia Schwarcz, uma ilustrada por Angeli e outra por Miguel Paiva. Tudo muito engraçado e ao mesmo tempo muito bem escrito. O método era simples. As cartolinas rodavam pelos grupos de quatro ou cinco alunos. Ao final da leitura eles tinham que responder a uma pergunta por escrito antes de passar para a cartolina seguinte. Meu primo ia de grupo em grupo vendo como iam as coisas e respondendo às perguntas. A sala de aula ficou barulhenta, viva, pulsante.

No corpo a corpo, era mais fácil para eles perguntar e no diálogo sobre o concreto é que as respostas eram construídas:

- Professor, aqui fala que Portugal tinha o monopólio da venda de produtos para o Brasil nesse tal de Pacto Colonial
- Você faz o que?
- Trabalho no comércio
- (outro aluno) Ele vende cachaça no boteco, professor
- Também é comércio. Aonde?
- Num botequim perto da estação de trem
- Por quanto?
- Por X
- Tem outros botecos perto?
- Sim, uma porção...
- Se não houvesse nenhum, se só o seu boteco vendesse cachaça pra turma toda que frequenta a estação. Quanto é que vocês iriam cobrar?
- Pô, professor, o preço ia lá pro alto
- Pois é, vocês teriam o monopólio da venda, que nem Portugal fazia com o Brasil

Claro que havia muita conversa solta, paquera, brincadeira e é bom que fosse assim para quem passara o dia inteiro espremido no trem ou ralando no serviço. Mas a partir daquela mudança de rumo, ninguém mais dormiu. Agora quem sonhava era meu primo.

Depois da leitura de todas as cartolinas vinha a segunda e mais ousada parte do método. Cada grupo teria que fazer uma obra artística com aquele conteúdo: uma música (valia paródia), uma peça ou um poema. Aqui a coisa começou a engasgar. Os alunos estavam com medo de se lançarem. Ninguém queria dar uma de boi de piranha, fazer um trabalho ruim, ser criticado pelo professor etc. Havia um grupo muito interessante. Era composto por cinco meninas, todas elas histórico-sociologicamente negras. Não havia quem desse gargalhadas mais sonoras lendo as cartolinas. Mas foram respondendo bem a todas as perguntas. Fizeram um samba sobre a nossa primeira constituição. Perguntaram se podiam se apresentar batucando. Claro que sim. Foi um sucesso. Meu primo as levou de turma em turma, elas sempre abafando, sempre muito aplaudidas.

A partir daí, todos ganharam confiança. Foi uma febre. Um grupo, com muita inteligência, fez uma paródia do rock do Ultraje a Rigor, Inútil. Perfeito para satirizar uma constituição que legitimava a escravidão e só permitia a participação política de proprietários. Houve quem fizesse poemas ou peças de teatro. Tudo era apresentado diante da turma, numa espécie de exame final transformado em programa de calouros. Meu primo resolveu radicalizar fugindo da prisão da nota. Quem fizesse um trabalho correto teria 10. Eles passaram a competir pelo aplauso do público, pela consagração da sua arte diante dos colegas. O professor ficava em segundo plano, como deve ser.

O mais emocionante ocorreu no último dia de aula. Um grupo que já havia feito seu trabalho pediu para apresentar uma peça. Tudo bem. Só que a peça não era sobre a História do Brasil. Era sobre a nossa história, deles e do meu primo idiota. Nela, satirizavam as pretensões e o autoritarismo do professor, bem como a resposta malandra da turma. Depois mostravam como tudo havia se transformado, no momento em que literalmente o professor se dispôs a ouvi-los. Porque ninguém dá voz a ninguém, todos têm voz. É só não abafá-la com aulas expositivas ou qualquer outro tipo de tortura. Foi assim que pouco a pouco, os alunos, de fracasso em fracasso, foram ensinando meu primo a ser professor.