É uma brincadeira. Nunca joguei uma pedra em alguém ou quebrei uma
vidraça. A última vez que briguei na mão com alguém eu tinha 14 anos e
apanhei ao defender um amigo que estava sendo atacado por namorar uma
moça do Leme, ele que morava em Botafogo. Sempre achei e continuo
achando a "tática black bloc" um grande equívoco, responsável pelo
esvaziamento das manifestações, colocando a opinião pública contra os protestos e facilitando de forma suicida a repressão policial.
Mas os deuses nos colocaram no mesmo barco por uma tarde. Quando soube
do arrastão policial da noite do dia 12 de julho, com a prisão
arbitrária de 19 ativistas à véspera da final da Copa, fiquei
absolutamente indignado. Acordei no domingo e quando vi a postagem de
uma amiga convocando para um protesto na Praça S.Peña fui para lá, onde
encontrei minha amiga.
Lá pelo meio-dia, a praça estava uma
festa. Jovens pintando faixas, outros exibindo cartazes, questionando a
ditadura das UPPs nas favelas ou a violência sofrida pelo povo
palestino. Estava mais para carnaval do que para guerra, embora eu
notasse a apreensão em vários rostos. Quando quisemos ir casa dela,
descobrimos que a praça havia sido totalmente cercada por policiais, com
todas as saídas bloqueadas por pms. No caminho, encontro dois
torcedores argentinos, vestidos com sua bandeira e completamente
perdidos sem saber o que estava acontecendo. Peço que venham comigo.
Em um dos bloqueios, sou encaminhado ao comandante, um tenente-coronel
digitando em seu celular. Ele nem mesmo levanta os olhos para mim quando
digo boa tarde. Mas quando pergunto a ele qual era a lei que impedia um
cidadão brasileiro de caminhar livremente pelas ruas ele me dá
"permissão" para passar. Eu, minha amiga e os dois argentinos, que ficam
muito agradecidos. Vamos para a casa dela e almoçamos.
Decido
ver a final da Copa, confortavelmente instalado no sofá. Mas recebemos o
telefonema de duas amigas que haviam sido barradas na esquina, bem onde
havia uma padaria. Fomos até lá, dispostos a usar a mesma argumentação
para liberá-las. Quando chegamos elas estavam sendo obrigadas a mostrar
as faixas que carregavam, como se os policiais tivessem direito de
proibir esta forma de expressão. O que veio depois foi pior.
Tentei conversar com o oficial, um capitão de nome Canito. A única coisa
que ele soube me dizer é que estava cumprindo ordens. Resolvi filmá-lo
para registrar o absurdo da situação. Creio que fica patente para todos
que viram o despreparo completo de uma pessoa que estava comandando
trinta homens armados até os dentes. Enquanto eu dava um telefonema,
saindo de perto por causa do barulho, um sargento se aproximou da minha
amiga e procurou intimidá-la perguntando se ela tinha filhos. Depois
passou o resto do tempo olhando para nós com cara feia e com a mão
direita no coldre.
Enquanto isso, a televisão da padaria reunia
uma mini-multidão heterogênea. Havia uma mulher animadíssima torcendo
pela Alemanha aos gritos, apaixonada pelo técnico do esquadrão
teutônico. Uma argentina, em bom castelhano, clamou pela solidariedade
latino-americana na forma de um gol. Alguns policiais, já mais
relaxados, comiam seu biscoitinho. Outros haviam saído das suas posições
e avançado, mas não era um ataque, era só pra ver o jogo melhor. Nessas
horas é que eu entendo o Aldir Blanc...
A Alemanha fez seu
gol. A mulher delirava. A solidariedade latino-americana sofria um duro
golpe. Assim que termina o jogo o bloqueio é dissipado. Esta vetusta e
insigne instituição, nascida há 205 anos para prender escravos fugidos,
finalmente nos deixava voltar para casa.
Até que meu dia de
black bloc foi divertido, se não fosse essa indignação que não passa por
nada. Ai que vontade de atirar uma pedra...
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