Eu e meus primos...

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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Senzala invisível

Na verdade, eu me lembrei da correção das provas do vestibular por conta do que me aconteceu neste início de abril de 2014. Fui passar o fim de semana com minha filha pequena em Vassouras. Como todos sabem, Vassouras já foi a maior produtora de café do mundo lá pelo ano de 1835. Ainda hoje a cidade ostenta uma certa graça, na belíssima praça da Matriz, em um conjunto significativo de prédios históricos, alguns em bom estado, outros em recuperação. Fico imaginando o que era esta cidade na primeira metade do século XIX, em seu apogeu econômico e político. Como ensina Walter Benjamin, todo monumento de civilização é também um monumento de barbárie. Cada parede, cada janela, cada rua de Vassouras, foram feitas pela mão de homens e mulheres escravizados e graças à riqueza que eles produziram. Pode-se olhar para um belo prédio do XIX e imaginar em cima de quanto suor e de quanto sofrimento humano ele foi erguido.

Corta para outra cena. Decido visitar uma fazenda de café. Não vou dizer qual, por motivos que ficarão claros. Posso dizer apenas que em seu auge ela foi uma das fazendas mais grandiosas da região. Sua área total chegava a 1.000 alqueires (algo como 4.800 campos de futebol). Ali trabalhavam 200 escravos. A Casa-Grande, em uma época em que janelas com vidros eram sinal de status, tinha 64 janelas. O comprimento da casa, de uma ponta a outra, é  de 70 metros.

Mas o que eu quero contar é outra coisa. Quero contar e analisar a narrativa feita pelo guia da visita e atual proprietário da casa. A primeira coisa que ele destaca, além do tamanho da propriedade, é o fato de que a escolha do local foi baseada na questão da vigilância. Da janela da Casa Grande podia-se controlar quem estava chegando, bem como visualizar a área onde os escravos trabalhavam. Sobre estes, disse o nosso guia ter realizado "pesquisas" e chegado à conclusão de que valiam o equivalente a um "carro popular". Em seguida, começou a criticar a Abolição, segundo ele uma lei muito mal pensada, pois a libertação deu-se em maio. Como a colheita do café se inicia em junho, lamentou ele, o café ficou todo no pé, nada foi colhido. Que pena! Embora tenha sido o último país do mundo a abolir a escravidão, o que nos tornou párias na comunidade internacional, parece que não foi tempo suficiente para pensar como fazer a Abolição. A nossa classe dirigente pensava muito devagar mesmo. Quanto à colheita, nosso guia estava enganado. No ano da Abolição houve uma perda de 37%. Ou seja, mesmo já livres, os ex-escravos colheram ainda 63% do café. Não ficou tudo no pé.

Em seguida ele atribui o fim da lavoura cafeeira em Vassouras à Abolição. Outro erro colossal. A "Civilização" do café no Vale do Paraíba fluminense não era sustentável. A cultura do café por ali se baseava na destruição a ferro (machado) e fogo (queimada) da Mata Atlântica. A terra era extremamente fértil mas por um período curto, de 20 a 25 anos. A "solução" dos proprietários, embora à época já se conhecessem métodos de fertilização e compensação, foi simplesmente derrubar mais floresta. Até que não houvesse uma só árvore. A médio prazo, o café de Vassouras era um projeto fadado ao fracasso, com ou sem escravos. Nosso guia aponta um pedaço de mata à nossa frente e comenta: foi reflorestado pelos passarinhos. Claro: quem mais o faria?

A crítica que ele fez à Abolição não parou por aí. "Imagine que você compra um carro e pode usá-lo à vontade", prosseguiu ele explorando sua comparação anterior. "De repente, você tem que pagar por ele", explica nosso guia, "é claro que você não vai querer". Segundo ele, o resultado teria sido o abandono do café pelos fazendeiros desgostosos de terem que pagar a seus carros, ou melhor, a seus ex-escravos, pela utilização dos seus corpos. Errado novamente, completamente errado. A safra do ano seguinte à Abolição, foi exatamente igual à safra do ano anterior à lei. Ou seja, os ex-escravos, em sua maioria, permaneceram ali. Ou será que sinhozinho e sinhazinha colheram o café com as próprias mãos?

Agora é que vem o mais inacreditável. O atual proprietário da Casa Grande explica pacientemente as consequências de uma lei tão "mal pensada". "Depois da Abolição", observa ele, "vocês já sabem o que aconteceu: favelização, violência urbana, prostituição...". Eu fiquei petrificado.

Por incrível que pareça, essa visão dos "males da Abolição" também estava muito presentes nas milhares de provas que meu primo e seus colegas corrigiram durante uma semana. Centenas e centenas de jovens repetiam a ideia de que a libertação dos negros escravizados era a causa dos nossos maiores problemas. É a imagem da invasão de um contingente de bárbaros. No caso do Rio de Janeiro, nada mais falso. A maior concentração de negros, livres e escravos, foi alcançada por volta de 1850, muito antes da Abolição. A violência sempre existiu e a escravidão era a maior violência, que dava o tom para todas as outras relações, mesmo entre "livres". Coloco aspas porque no tempo dos barões uns eram mais livres do que outros. As favelas, por sua vez, surgiram por conta do descaso das autoridades quanto à questão da habitação pública. A primeira delas, que deu nome às outras, é proveniente do atraso do pagamento das pensões aos veteranos da Guerra de Canudos. Enquanto esperavam, que subissem o morro e acampassem lá em suas barracas. O povo que se vire!

Voltemos à visita. Sobre a origem das duzentas "peças" que trabalhavam e que foram responsáveis por todo aquele esplendor, nosso guia não dá uma palavra. Apenas aponta para um lado e depois para outro dizendo: "Ali ficava a senzala dos homens" e "Ali ficava a senzala das mulheres". Esta separação, logicamente, era um instrumento de controle, punindo ou recompensando os escravos homens por seu comportamento. Além de facilitar o uso e abuso do corpo das escravas pelos senhores. A senzala feminina, aliás, ficava bem mais perto da Casa-Grande. Afinal muitas escravas deviam trabalhar na casa e também representavam um perigo menor para os senhores. Pergunto ao nosso "guia" (a esta altura creio que as aspas se justificam) se posso dar uma olhada na senzala feminina e ele diz não valer a pena: "não sobrou nada", diz ele.

Mas a senzala ainda estava lá, com suas janelas bem altas gradeadas a 45 graus, com suas portas de madeira e arcos de pedra. A preocupação com a fidedignidade histórica levou o casal de proprietários a buscar incessantemente e a alto custo objetos em leilões para decorar a casa, substituindo os móveis originais totalmente desaparecidos durante o período de abandono da propriedade. O mesmo não aconteceu em relação à senzala. Em frente à senzala das mulheres, devia existir um terreiro onde os escravos dançavam o jongo aos sábados à noite em torno da fogueira. Cantavam pontos cifrados que seus senhores, por ignorância e por falta de interesse, não entendiam. Faziam críticas pesadas como "Com tanto pau no mato, embaúba é coroné", comparando o proprietário a uma árvore de madeira  imprestável e que sequer dava sombra. Neste lugar, hoje há uma piscina e o antigo abrigo-prisão das escravas serve de vestiário para os neo-sinhozinhos trocarem de roupa.

Havia outras pessoas na visita, uma delas uma pedagoga muito falante e perguntadora. Ninguém, todavia, exceto eu, perguntou alguma coisa sobre a senzala ou sobre os escravos. Todos queriam saber sobre a visita da Princesa Isabel em 1884 e acerca do jantar com menu em francês e 14 serviços diferentes. Ou sobre o lustre que decorava a sala. Em meio da visita, um momento solene, vamos todos para a mini-capela. Ali, a atual proprietária, uma loura de farmácia, diante dos visitantes reunidos tocou com suas mãos "brancas" um pouco de piano. Música escolhida: Em algum lugar do passado. Um clima de "E o Vento Levou...", de saudades da escravidão.

Ao fim da visita, em uma sala magnífica decorada com móveis e objetos de época, todos comiam seu bolinho e tomavam seu cafezinho tranquilamente. Posto na mesa por uma empregada historico-sociologicamente negra que entrou e saiu da sala de forma discreta e silenciosa. Talvez não tenha sido nem vista, talvez seja ainda invisível. Mas foi a mão dos seus antepassados que construiu toda aquela riqueza.

2 comentários:

  1. Sensacional, Alvito. Que grande antropólogo você é, amigo. Isso é um registro muito revelador sobre a mentalidade da sociedade brasileira (generalizando, claro). Não há indignação contra os absurdos que um cara desses diz, como se fossem "verdades históricas". Não há indignação por quê? Eis uma questão... é porque as pessoas pensam parecido ou porque não têm senso crítico nenhum, simplesmente não pensam sobre o que escutam?

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  2. Lindo depoimento. Essas "verdades históricas" são um perigo ! Vou ler o livro recomendado por você e espero enriquecer ainda mais os meus e e nossos conhecimentos sobre a escravidão do Vale do Paraíba. Obrigada pela dica ! Abs, Tatiana

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