Filho de
peixe...
Há coisas
muito difíceis de dizer ao seu filho. Não me lembro do que disse, nem se disse
alguma coisa, no dia em que ele mirou um homem que vivia na rua e fuzilou, do
alto da bondade dos seus quatro anos: Papai, porque a gente não leva ele pra
casa? Mas um dia houve uma pergunta ainda mais difícil de responder.
O garoto
era louco por futebol. O fim de semana todo se passava nas quadras, nos parques
ou em qualquer outro lugar com uma superfície mais ou menos plana. Almoço na
vovó? Tudo bem: antes e depois do almoço, jogo no play, apesar do piso de
azulejos. Um contra um. Claro que eu sempre deixava ele vencer. Dizia pra mim
mesmo que era para ele ganhar confiança. Para treinar a perna cega, a esquerda,
facilitava as jogadas em que ele usasse a canhota. E eu começava ganhando por
dois, três gols de vantagem pra testar a fibra dele. No final, sempre aquela
vitória por placar apertado e uma comemoração apoteótica que eu tinha que
assistir fingindo estar triste.
Ele nascera
apressado, um mês antes do previsto. Eu e a mãe dele fomos correndo pro
hospital num Fiat 147 caindo aos pedaços. No dia seguinte, na maternidade,
passado o susto, ponho a cabeça pra fora do quarto e vejo um espetáculo dantesco.
Meu filho nascera cercado de tricolores, vascaínos e botafoguenses. Em cada
porta havia uma bela e refinada meia de tricô com as cores adversárias. Aquilo
não podia ficar assim.
- Meu amor,
tá tudo bem? É que eu esqueci uma coisinha lá em casa, vou buscar e já volto.
Voltei com
minha camisa dez do Flamengo, tamanho grande. Pendurei a dita cuja na porta,
soberana. As enfermeiras já entravam no quarto dando gargalhada. Meia de tricô
é o cacete... Depois disso, não há como reclamar que o guri fosse alucinado por
futebol e pelo Flamengo. Era tão apaixonado que, certa vez, no Maraca, é claro,
começou a chorar diante da derrota para o São Paulo por dois a um. Em torno, um
monte de marmanjos comovidos tentando consolá-lo. A única coisa que lhe disse
foi que só se é torcedor na derrota, a vitória é pra qualquer um. Nunca mais
ele chorou. Não por isso.
Claro que
eu tentava levá-lo a lugares onde houvesse outros garotos para ele jogar uma
pelada de verdade. Mas mesmo com o time já formado ele queria me ver dentro de
campo com ele. Houve um dia na Lagoa que estava tão quente que não havia
ninguém ao redor. Eu já estava conformado em ter que jogar o nosso tradicional
um a um. Eis que ao longe, vejo um grupo de garotos se aproximando. Eram
meninos pobres, um com a indefectível caixinha de engraxate. Chegaram com educação:
- Tio,
podemos jogar?
Meu filho
olhou para mim com alguma preocupação, mas com confiança. Pedi que dividissem
os times e avisei que ia ser um jogo limpo, sem pontapé. Ao time do meu filho
só dei uma instrução: vamos passar a bola pro garoto. Aqueles meninos não eram
bobos, toda a hora deixavam meu moleque na cara do gol. Melhor do que isso, meu
filho perdera o medo deles, entendera que eram apenas meninos.
Ele já
fizera várias escolinhas de futebol. Aos poucos ia ficando claro para ele que a
genética pesava, filho de perna de pau nunca vai ser craque. Eu também passara
a minha infância sonhando ser jogador. Sonhando mesmo: eu tinha um sonho
repetido de que estava jogando uma final no Maracanã com a camisa dez do
Mengão, fazia o gol da vitória e ouvia a galera gritando o meu nome. Claro que
com ele não era diferente. Eu deixava ele sonhar à vontade. Mas ele ia
percebendo as suas limitações, ia se comparando com outros e entendendo que o
sonho ficava a cada dia mais distante.
Um dia,
quando íamos para a casa da vovó, promessa de um a um no play, ele me segurou
levemente pelo braço e me encarando com olhos tristes fez a pergunta que cravou
um punhal na minha alma:
- Pai, eu
nunca vou ser jogador de futebol, não é?
Tentei sair
pela tangente, dizendo que não era impossível, coisa e tal. Mas ele não estava
pra brincadeira. Acho que naquele dia ele deixou de vez de ser criança. Pois
arrematou sem perdão:
- E por que
você sempre deixa eu ganhar?
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