Eu e meus primos...

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sexta-feira, 2 de maio de 2014

Filho de peixe...

Filho de peixe...

Há coisas muito difíceis de dizer ao seu filho. Não me lembro do que disse, nem se disse alguma coisa, no dia em que ele mirou um homem que vivia na rua e fuzilou, do alto da bondade dos seus quatro anos: Papai, porque a gente não leva ele pra casa? Mas um dia houve uma pergunta ainda mais difícil de responder.

O garoto era louco por futebol. O fim de semana todo se passava nas quadras, nos parques ou em qualquer outro lugar com uma superfície mais ou menos plana. Almoço na vovó? Tudo bem: antes e depois do almoço, jogo no play, apesar do piso de azulejos. Um contra um. Claro que eu sempre deixava ele vencer. Dizia pra mim mesmo que era para ele ganhar confiança. Para treinar a perna cega, a esquerda, facilitava as jogadas em que ele usasse a canhota. E eu começava ganhando por dois, três gols de vantagem pra testar a fibra dele. No final, sempre aquela vitória por placar apertado e uma comemoração apoteótica que eu tinha que assistir fingindo estar triste.

Ele nascera apressado, um mês antes do previsto. Eu e a mãe dele fomos correndo pro hospital num Fiat 147 caindo aos pedaços. No dia seguinte, na maternidade, passado o susto, ponho a cabeça pra fora do quarto e vejo um espetáculo dantesco. Meu filho nascera cercado de tricolores, vascaínos e botafoguenses. Em cada porta havia uma bela e refinada meia de tricô com as cores adversárias. Aquilo não podia ficar assim.

- Meu amor, tá tudo bem? É que eu esqueci uma coisinha lá em casa, vou buscar e já volto.

Voltei com minha camisa dez do Flamengo, tamanho grande. Pendurei a dita cuja na porta, soberana. As enfermeiras já entravam no quarto dando gargalhada. Meia de tricô é o cacete... Depois disso, não há como reclamar que o guri fosse alucinado por futebol e pelo Flamengo. Era tão apaixonado que, certa vez, no Maraca, é claro, começou a chorar diante da derrota para o São Paulo por dois a um. Em torno, um monte de marmanjos comovidos tentando consolá-lo. A única coisa que lhe disse foi que só se é torcedor na derrota, a vitória é pra qualquer um. Nunca mais ele chorou. Não por isso.

Claro que eu tentava levá-lo a lugares onde houvesse outros garotos para ele jogar uma pelada de verdade. Mas mesmo com o time já formado ele queria me ver dentro de campo com ele. Houve um dia na Lagoa que estava tão quente que não havia ninguém ao redor. Eu já estava conformado em ter que jogar o nosso tradicional um a um. Eis que ao longe, vejo um grupo de garotos se aproximando. Eram meninos pobres, um com a indefectível caixinha de engraxate. Chegaram com educação:

- Tio, podemos jogar?

Meu filho olhou para mim com alguma preocupação, mas com confiança. Pedi que dividissem os times e avisei que ia ser um jogo limpo, sem pontapé. Ao time do meu filho só dei uma instrução: vamos passar a bola pro garoto. Aqueles meninos não eram bobos, toda a hora deixavam meu moleque na cara do gol. Melhor do que isso, meu filho perdera o medo deles, entendera que eram apenas meninos.

Ele já fizera várias escolinhas de futebol. Aos poucos ia ficando claro para ele que a genética pesava, filho de perna de pau nunca vai ser craque. Eu também passara a minha infância sonhando ser jogador. Sonhando mesmo: eu tinha um sonho repetido de que estava jogando uma final no Maracanã com a camisa dez do Mengão, fazia o gol da vitória e ouvia a galera gritando o meu nome. Claro que com ele não era diferente. Eu deixava ele sonhar à vontade. Mas ele ia percebendo as suas limitações, ia se comparando com outros e entendendo que o sonho ficava a cada dia mais distante.

Um dia, quando íamos para a casa da vovó, promessa de um a um no play, ele me segurou levemente pelo braço e me encarando com olhos tristes fez a pergunta que cravou um punhal na minha alma:

- Pai, eu nunca vou ser jogador de futebol, não é?

Tentei sair pela tangente, dizendo que não era impossível, coisa e tal. Mas ele não estava pra brincadeira. Acho que naquele dia ele deixou de vez de ser criança. Pois arrematou sem perdão:


- E por que você sempre deixa eu ganhar?

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