Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

sábado, 17 de maio de 2014

Agora não, Ulisses...

Com vinte e quatro anos meu primo começou sua vida de professor universtitário. Teve até que deixar a barba crescer para parecer um pouco mais velho e respeitável. Ele ensinava História Antiga, seus alunos eram sempre do primeiro período. Sendo assim, não foram poucas as vezes que os alunos entravam em sala, olhavam pra ele e pensavam: "esse sujeito tem cara de aluno, deve ser aula trote". Quando eles viam a quantidade de trabalhos e leituras também deviam achar que era uma brincadeira de mau gosto, mas não era. Meu primo era extremamente exigente. Em quase toda aula havia um trabalho a apresentar: fichas, resumos, cronologias e até mapas. As turmas enlouqueciam. Uma delas até foi reclamar à Coordenação por ser obrigada a estudar demais. Não adiantou. E dá-lhe fichamento...

Fora este pequeno "detalhe", a relação com as turmas era muito boa. O professor era esforçado, nunca chegava atrasado, parecia estar dando o máximo, mesmo que isso ainda fosse muito pouco. De qualquer maneira, a convivência era agradável. Aquela turma em particular parecia gostar muito das aulas do meu primo. E ele se sentiu muito feliz quando foi convidado de honra da turma para assistir a uma peça que eles haviam montado. E praticamente no Céu quando soube que era uma montagem da Odisséia de Homero. Se era ou não de Homero, aliás, era uma das questões do curso.

Sentou no chão, assim como todos, mas na primeira fileira. Claro que eles tomaram algumas liberdades, como era de se esperar. No poema, Nausícaa, a princesa dos feácios se apaixona por Ulisses, sem saber que se tratava dele e nem ao menos desconfiando que aquele amor era impossível. Ela irá ajudá-lo a receber a proteção dos feácios, que será essencial para seu retorno a Ítaca, depois de dez anos lutando em Tróia e mais uma década vagando entre monstros de um olho só, sereias, feiticeiras e outros seres menos cotados. Pois bem, aquele dia Nausícaa era encarnada por uma moça histórica-sociologicamente negra, totalmente vestida de branco, turbante inclusive, que bem poderia ser uma baiana do acarajé. Até aí ele achou ótimo, devia ser algum diálogo entre tradições que ele ainda não percebera.

Quando Ulisses entrou em cena, todavia, meu primo começou a desconfiar. Ulisses dos artifícios mil, Ulisses aventureiro, corajoso, ardiloso. Bem, Ulisses era representado por um aluno conhecido por seu senso de humor e seu físico de barril de chopp bem distribuído em um metro e sessenta de altura. Por que não, se perguntou meu primo, por que não? Deve ser uma denúncia dos nossos preconceitos, da nossa obsessão com corpos perfeitos.

No finalzinho da peça, depois de enfrentar muitos perigos, o rechonchudo Ulisses finalmente chega diante da sua mulher, Penélope, vinte anos depois de ter partido de casa. Para Penélope o diretor de elenco havia escolhido a aluna mais velha da turma, que tinha escandalosos quarenta e poucos anos. Até aí, perfeito, afinal, depois de duas décadas fiando e desfiando o mesmo manto Penélope devia estar meio velhinha mesmo. Só havia uma coisa que beirava o inaceitável, ao menos para o meu primo. É que aquela Penélope tinha cabelos absurdamente oxigenados. Para a Odisséia, era psicodélico.

Pois bem. Cena derradeira. Ulisses redondinho se aproxima de Penélope oxigenada. Cheio de desejo. Afinal vinte anos não são vinte dias, ele toma da mão dela e sussurra com voz sensual:

- Vem, meu amor... vem

De mau humor, ela responde, cabeça baixa, sem tirar os olhos de alguns papéis à sua frente:

- Agora não... tou fazendo o fichamento do Alvito!


Um comentário: