Cardosão sou eu, cabo Cardoso pra
quem não me conhece. Não gosto de dar confiança. Mais amor e menos confiança,
dizia meu pai. Fazer o quê, se essa cambada de oficial frouxo que tem por aqui
não honra a farda que veste. Tem que saber se impor, se não, nego monta e aí
não dá mais pra correr atrás do prejuízo. O senhor veja o uniforme, por
exemplo. Tem um espelho grande pra caralho, fica bem na entrada, logo depois do
Corpo da Guarda. Não dá pros filha da puta deixar de ver. Nem de ler:
“ESTE ESPELHO REFLETE VOCÊ E VOCÊ A PMERJ“.
Tá certo, certíssimo, mas tem muito militar lambão por
aí. Vê só o Rubens: nem dá pra acreditar que é PM, o mug dele tá sempre mal
passado, nem sabe engraxar o bute direito e o que é pior, vive a ostentar um
medalhão de S.Jorge mal disfarçado por debaixo da farda, sem falar naquelas
correntes de pulso, douradas, que quando balançam fazem mais barulho do que
baiana de acarajé. Fica parecendo bandido. Porra, já disse pra ele um milhão de
vezes, bandido é bandido e polícia é polícia. É feito óleo e água, não dá pra
misturar. Comigo não tem disso, que nem todo mundo fala, Cardosão reza por
outra cartilha. Quem me ensinou foi o finado Sargento Bonfim, que Deus o tenha.
Isso é que era Federal, não é que nem esses franguinhos que saem do CEFAP,
botam um quepe na cabeça e uma arma na cintura e pensam que entendem do
serviço. “Nem todo mundo dá pra essa coisa”, assim me disse o Bonfim no dia em
que botei o pé no Trinta e Dois. Na época o bicho tava pegando, guerra no Morro
da Gazua, uma das primeiras guerras do tráfico que saiu no jornal, aquela da
menininha segurando um trabucão, Julinha o nome dela, os bacanas ficaram tudo
assustado... deu até no Jornal Nacional. Assustado à toa: essas meninas de
favela já tão tudo sendo enrabada com doze, treze, aos catorze já tão de
barriga. Tinha uma num morro lá de Bangu que aos quinze já fora viúva três
vezes, tudo de menino do tráfico. Os caras chamavam ela de xoxota assassina.
Pior do que isso só as patricinhas que vem na fissura do pó e acabam na vala.
Atrás do pó vieste e ao pó voltarás. O que ?
Porra doutor, tem menininha da Zona Sul, viciada, que chega na Boca
disposta a qualquer coisa. Quando o dinheiro termina elas faz de tudo: paga boquete
pros cara, topa ir com dois, três ao mesmo tempo. Me contaram uma, essa também
já não posso garantir que é verdade, que certa vez um gerente levou a menina
pro meio do baile e mandou ela cheirar a carreirinha em cima do pau dele. E a
bichinha não se fez de rogada...
O Bonfim só falava te olhando bem firme no meio dos
olhos, pra ver se tu tremia nas base. Depois que fiquei mais ou menos amigo
dele – o Bonfim nunca abria totalmente a guarda –, fiquei sabendo que ele já ia
te manjando na primeira conversa. A partir daí, teu destino tava traçado. Se o
Bonfim se agradasse de tu, tu ia formar com ele na linha de frente, como ele
chamava. Quando a PATAMO dele subia o morro, era aquele zunzum, os guris já
trepavam por aquelas vielas feito cabras malucas, gritando: ‘chegou a Morte,
chegou a Morte’. Em um minuto o Morro parecia uma cidade fantasma, igualzinho a
filme americano. Daqueles em que o bandidão e sua quadrilha, vestidos de preto
ainda por cima, entravam na cidade cavalgando e levantando uma poeira danada, e
dava pra ouvir o barulho de uma mosquinha voando. Mas não lembro de ter visto
mosca em filme americano que gringo não é otário. Ia dizendo, a favela
esvaziava rapidinho, nego que devia e quem não devia também, porque ninguém
queria ficar na pista quando o Bonfim pintava na área. Dava até gosto de ver.
Não é que nem hoje. Por isso os vagabundo ficam cantando que até o Bope treme.
Treme é o caralho, os homi de preto são foda. O problema é que nem todo mundo é
caveira. Ali bandido sabe que não vai ter boa vida, o arrego é arriscado e
peixe que cai na rede... é cordinha, facão e saco preto. Num tem escapatória,
doutor. Mas na época do Bonfim, bastava os vigia bater o olho na placa com fim
66 da Patamo que todo mundo dava pinote. Bonfim impunha respeito. O homem tinha
até marca registrada. Depois que mandava o mau elemento pra fazer companhia ao
Capeta, mandava nós virar o sujeito de cu pra cima, cara enfiada na lama, dizia
que não gostava de olhar pra safado. Pra arrematar, mandava o Fininho arrancar
a orelha esquerda. Dizia que na vida, se escutavam dois tipos de conselho, os
bons e os maus. Mas que o bandido só tinha orelha pra ouvir, pensar e planejar
maldade, por isso mandava o Fininho arrancar o porto de entrada da perversidade
– o Bonfim era até metido a poeta nessas horas. Mesmo que a gente não
entendesse fazia de conta, ninguém ia se meter a besta. Sujeito bom de faca,
esse Fininho. Se o senhor olhasse pra ele, doutor, não dava nada não, parecia
um porteiro de prédio, franzino – daí o apelido, bigodinho ridículo e uma
risadinha envergonhada e contida, feito hiena. Mas quando chegava a hora da
onça beber água, era o braço direito do Bonfim. Era o próprio Bonfim que
contava. Uma vez tava de cama e precisava acabar com a moral de uns bandidinhos
que tavam desafiando ele. Mandou o Fininho no lugar. Pra que, doutor, os homens
crescem é no momento da responsabilidade – é isso que eu falo pra esses praça
bundão que num sabe nem dar conta de um servicinho à toa, parece até que
acreditam nos tais dos direitos humanos. E desde quando bandido é gente ? Pois é, como que eu tava contando, o Fininho
foi fazer o serviço e botou pra quebrar. Passou o cerol no bando todo, exceto
um. Desse um ele arrancou todos os dedos, menos o polegar da mão direita. O
Fininho dizia que era pra ele poder fazer sinal de tudo certo ! E ainda por cima mandou colocar um dos dedos
no formol. Durante um mês, enquanto durou a operação café-da-manhã... Ah, tinha
esse nome porque a gente começava na madruga, antes do sol nascer, os filha da
puta já acordavam com a gente dando chute na porta e dizendo bom dia, o Bonfim
dizia que soldado dele tinha que ser educado. Certo, o negócio do dedo. Botou o dedo do gerente –
palavra muito metida a besta, o sr. não acha ? – pegou aquele dedo e colocou
num vidrinho, dizia que era o talismã dele... O senhor não acredita em mim
? Nem tudo tá nos livros, doutor, nem
tudo. De qualquer forma, quando o Bonfim voltou mandou ele jogar fora, falou
que era de mau agouro. Acho também que ele não queria que o Fininho começasse a
aparecer muito. Quem cria cobra...
Mas a história que eu tava querendo
contar era outra. Uma vez teve uma velha que ficou parada no meio da rua, só
vendo todo mundo batendo em retirada pro seu cafofo. A velha ficou ali,
paradinha, olhando pro Bonfim descendo da Patamo, já engatilhado e pronto “pra
trabalhar” como ele gostava de dizer. Pois é, o sr. sabe que a velha não
arredou pé, nem mesmo quando o Bonfim e a turma dele – eu ainda não havia caído
nas graças – correram na direção dela. “Por que tu não correu, velha fedorenta
?” E a velha ainda teve boca pra falar, doutor, a coroa era danada. Sabe essas
velhinhas que a gente vê na rua, todas encurvadas, tortinhas, andando de
teimosia ? Pois essa era assim. Nem
dente nem dentadura, só aquelas gengivas estragadas. O Bonfim pensou que ela
fosse doida, mas a velha era corajosa. “O Sr. é bicho, por acaso, pra eu ter
medo do Sr. ?”. O efetivo da Patamo todo
riu, não deu pra segurar. Mas o Bonfim não podia perder a moral. Ensopapou a
velha, lascou-lhe um tapa: “Toma isso pra deixar de ser folgada”. Os soldado
dele engoliu o riso na hora, endireitou o corpo e esbugalhou os olhos se
preparando pra qualquer coisa, era mau negócio brincar com fogo. Acredite se
quiser, não parou por aí. Aquela velhinha fracotinha da Silva ainda teve força
pra botar o dedo na cara do Bonfim. Botou mesmo, olhou pra ele com aqueles
olhinhos doídos e falou, com toda a calma: “o Sr. me bateu com essa mão, mas
logo, logo, o Sr. não vai mais ter mão pra dar tapa em ninguém”. O Bonfim teve
que disfarçar o espanto, disse que aquilo tava atrasando a operação e continuou
a subir o morro. Sabe, lá no sul os polícia chama isso de “pedalar barraco”.
Conforme eu ia dizendo, tiro e queda, puta-que-pariu, será que a porra da velha
era macumbeira ? O fato é que na semana
seguinte o Bonfim caiu. Era uma operação tranquila, blitz de fim de semana pra
arrumar um trocado. O Bonfim também era bom nisso. O que ele fazia era genial,
nunca vi. Ao invés de ficar parando carrinho caído, esses fiat uno caindo aos
pedaços, fusquinha e toda a qualidade de carro velho, o Bonfim fazia diferente.
Mandava parar só carro de bacana. “Quer ver ?” dizia ele, “esses filhas da puta
não pagam um imposto”. Não é que ele tava certo, doutor ? Ficava besta de ver, cada carrão importado,
desses que parecem um tanque quadradão, a madame descia e na hora da
documentação, tava tudo em atraso. “E agora, o que eu faço ?” “Não se preocupe,
madame, a gente para um táxi pra senhora”. O velho Bonfa ainda tirava onda de
cavalheiro. O Federal arrepiava. Fazia o acerto e todo mundo comia uma graninha
boa, mas de vez em quando ele cismava, dava uma raiva nele ver aqueles bacanas
metidos a besta, olhando a gente do alto, como se polícia fosse sujo. Nem
quando eles caíam do cavalo perdiam a pose. Tinha dia que o Bonfim mandava
recolher ao depósito. O riquinho ali, feito babaca, sem acreditar que um PM
tava fudendo ele, mandando rebocar o BMW. Claro que a gente gostava do dindin,
mas a turma vibrava quando o Bonfim ferrava um doutorzinho de terno e gravata.
Às vezes dava merda, é claro. Como no dia em que ele autuou a filha de um
juiz... Quase que o comandante dá uma
cadeia nele. Mas o Bonfim já tinha feito uns servicinhos pro homem, daí que...
pera ai, tou esquecendo de contar como o Bonfim caiu. Pois é, a velha bruxa
rogou praga e não é que pegou ? Eu tava
contando, dia de sábado tavamo fazendo uma blitz na Suburbana. Não era nem
perto de morro. Corria tudo nos conformes, neguinho sendo parado, documento
verificado, um dinheirinho corria aqui, outro ali. De vez em quando pintava uns
papelotes, uma ervinha. Tudo beleza. O Bonfim parecia um Gérson, ali no meio de
campo, feito maestro, dirigindo tudo, fazendo aquele bico dele, feito o caboclo
Urubatão. Era difícil o homem mostrar os dentes. Pois é, o serviço tava quase
terminando, já tavamo quase tocando recolher. Foi aí que pintou aquela moto.
Motinha doutor, dessas que parecem tá peidando fumaça pra dar 60, sabe como é
? O cara vinha de capacete. Polícia não
gosta de capacete. Como é que eu vou trabalhar sem ver a cara do malandro
? Aprendi com o Bonfim, já disse. O
Bonfim, bem antes da moto chegar, mandou eu parar o cara. Procedimento de
rotina, tem muita moto com documentação ruim, tem muito motoqueiro sem
carteira. A moto veio parando devagarinho, parece que o desgraçado já sabia que
ia ser parado, já tava armando o bote. Pois o senhor acredita que o danado fez
que nem o Romário ? O senhor vai dizer
que nunca viu um jogo do cara ? Ele se
fazia de morto e de repente dava uma arrancada... Pois é, mas esse elemento da
moto, quando todo mundo pensava que ele já estava enquadrado deu uma acelerada
de fritar o pneu e passou por mim voado. Quando eu me virei pra atirar num deu
mais tempo... O velho Bonfa tava na supervisão e tinha se colocado na frente do
doidão. Porra, doutor, foi só um tiro, um tirinho desgraçado de certeiro e os
miolos dele espalhados pelo chão. Nunca vi coisa igual. Se eu encontro aquela
velha...
Tem cenas que não saem da mente da gente, doutor. Ser
pm é foda. O cara vê cada coisa, fica assombrado, aquele filminho passando na
cabeça o tempo todo. Chega em casa tem que caprichar no sorriso pra esposa,
“Tudo certo, meu bem”, tem que beijar as crianças, torcer pra que elas não
leiam nos seus olhos o terror. Quando eu ainda era soldado, tirava um serviço
no Morro do Bode. Tava lá no PPC vendo a banheira do Gugu quando ouvi um
gritinho. Gritinho abafado, pensei até que tava imaginando. Mas polícia tem que
conferir tudo, não dá pra marcar bobeira. Chamei o Ribeiro pra vir comigo. Quando
botei o pé na rua vi logo uma senhora chorando encostada a um poste. Ela nem
conseguiu falar, só apontou o barraco. Doutor, só de contar já fico arrepiado.
Na cama a menininha tava sangrando e os olhinhos dela parece que iam saltar das
órbitas. Em cima dela um crioulo todo suado, exalando um bodum desgraçado de
cachaça misturado com aquele cheiro forte de preto. Quando o negão viu a gente
ele pareceu surpreso, o filho da puta. Como se fosse a coisa mais natural do
mundo sair rasgando uma menina de sete anos – eu também tenho uma filha,
doutor. Nessa hora o sangue ferve. O negão tentou saltar fora pela janela, mas
o Ribeiro pegou o cara pelo pé e puxou pra dentro de novo. Eu já meti o but no
saco dele, pra fazer as bolas dele virarem farinha. Ele urrou de dor enquanto a
menina abraçou o lençol e se cobriu toda, envergonhada. O Ribeiro chutou o
focinho do crioulo sem parar, numa fúria que ia aumentando quanto mais aquele
porco sangrava. O tenente chegou depois, bem na horinha, quando eu já tinha
puxado o cão do revólver pra trás. Era um tenente novinho, um pirralho cheio de
marra. Pressionando bem forte o cano na testa do negão, eu rosnei pro tenente:
“E aí, meu chefe ? Qual vai ser ?” Precisa ver a cara que o tenente fez. Ele
engasgou, olhou assustado pra gente e falou antes de bater em retirada: “É
contigo mesmo, Cardoso, não quero nem saber.” Claro que ele ouviu o tiro. Se o
Fininho estivesse ali naquela hora... Ele ia cortar o negão feito mortadela de
padaria. Tiro foi bom demais, ele não valia nem a munição. No meu lugar, o que
o senhor faria, doutor ? Sete anos...