Eu e meus primos...

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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Meus primos idiotas, parte 2

Esse primo passou na prova para professor da rede estadual. Foi para uma escola no centro de Campo Grande, trabalhar no turno da noite. Na primeira vez foi de trem, para tentar avaliar como era ir, voltar, trabalhar e chegar à noite na escola para assistir aula. Apenas para ir, fora do horário de pico, já era de matar. O diretor olhou para ele de cima abaixo, deduziu a inexperiência da carinha de garoto e não teve coragem de escalá-lo para dar História. Ficou com seis turmas de O.S.P.B., Organização Social e Política do Brasil. Como a Constituinte de 1988 já apontava no horizonte, decidiu trabalhar as constituições brasileiras com as turmas. Na teoria, ótimo.

Acontece que esse primo, enquanto professor, estava um bocado cru. Acreditar em discos voadores, duendes e lobisomens é perfeitamente normal, mas acreditar na eficácia de aulas expositivas é dose pra leão. Ele preparava sua aula meticulosamente e a apresentava, tintin por tintin, para cada uma das seis turmas de 50 alunos que lhe cabiam. Distribuía folhas com resumos, chegava na hora, saía na hora, enfim, se dedicava ao máximo. Muitos alunos, educadamente, fingiam prestar atenção. Outros, menos resistentes, faziam, digamos, um protesto silencioso: dormiam. Meu primo, com uma pontinha de bom senso, pedia que não fossem acordados. Mesmo idiotas podem ter respeito pelos sonhos alheios.

Parêntesis para a sala dos professores. Meu primo passou a não frequentá-la mais. Durante os intervalos, ia para um cantinho da cantina comer seu sanduíche quietinho, esperando tocar o sinal. É que o clima entre os professores era deprimente. A desesperança era muito grande e o conformismo, seu irmão, também. Ele viu professores se referirem a alunos de forma no mínimo desrespeitosa, fazendo julgamentos morais do tipo:

- Viu a minissaia da fulana, qualquer dia aparece de barriga e depois reclama...

ou

- Sicrano nunca vai aprender, não adianta tentar ensinar

E por aí vai. Meu primo, idiota ou não, estava vivo. E ali era a terra fantasmagórica das almas mortas.

Voltemos à sala de aula. Vem a primeira prova. O resultado foi pífio. Experientes no assunto, 300 alunos haviam colado com maestria, só que de alguém que não havia estudado... Meu primo ficou furioso. Tanta dedicação, todo aquele trabalho, tivera como contrapartida uma atitude que ele considerava um desacato. Para cada uma das seis turmas ele repetiu uma descompostura exemplar. Quase esteve a ponto de se igualar a alguns frequentadores da sala dos professores. Quase os chamou de burros por terem "colado" de alguém que fizera uma péssima prova.

Como os deuses são bons, vieram as férias. Meu primo, ânimos acalmados, se pôs a pensar. Trezentos alunos estava errados e só ele estava certo? Não podia ser, havia algo de errado ali. Decidiu mudar tudo. Adeus aulas expositivas. Adeus folhinhas sérias e bem comportadas. Resolveu lançar mão de armas poderosas: humor e arte. Preparou cartolinhas onde colocou a fotocópia de dois livros de história do Brasil em quadrinhos. Duas maravilhas escritas por Lilia Schwarcz, uma ilustrada por Angeli e outra por Miguel Paiva. Tudo muito engraçado e ao mesmo tempo muito bem escrito. O método era simples. As cartolinas rodavam pelos grupos de quatro ou cinco alunos. Ao final da leitura eles tinham que responder a uma pergunta por escrito antes de passar para a cartolina seguinte. Meu primo ia de grupo em grupo vendo como iam as coisas e respondendo às perguntas. A sala de aula ficou barulhenta, viva, pulsante.

No corpo a corpo, era mais fácil para eles perguntar e no diálogo sobre o concreto é que as respostas eram construídas:

- Professor, aqui fala que Portugal tinha o monopólio da venda de produtos para o Brasil nesse tal de Pacto Colonial
- Você faz o que?
- Trabalho no comércio
- (outro aluno) Ele vende cachaça no boteco, professor
- Também é comércio. Aonde?
- Num botequim perto da estação de trem
- Por quanto?
- Por X
- Tem outros botecos perto?
- Sim, uma porção...
- Se não houvesse nenhum, se só o seu boteco vendesse cachaça pra turma toda que frequenta a estação. Quanto é que vocês iriam cobrar?
- Pô, professor, o preço ia lá pro alto
- Pois é, vocês teriam o monopólio da venda, que nem Portugal fazia com o Brasil

Claro que havia muita conversa solta, paquera, brincadeira e é bom que fosse assim para quem passara o dia inteiro espremido no trem ou ralando no serviço. Mas a partir daquela mudança de rumo, ninguém mais dormiu. Agora quem sonhava era meu primo.

Depois da leitura de todas as cartolinas vinha a segunda e mais ousada parte do método. Cada grupo teria que fazer uma obra artística com aquele conteúdo: uma música (valia paródia), uma peça ou um poema. Aqui a coisa começou a engasgar. Os alunos estavam com medo de se lançarem. Ninguém queria dar uma de boi de piranha, fazer um trabalho ruim, ser criticado pelo professor etc. Havia um grupo muito interessante. Era composto por cinco meninas, todas elas histórico-sociologicamente negras. Não havia quem desse gargalhadas mais sonoras lendo as cartolinas. Mas foram respondendo bem a todas as perguntas. Fizeram um samba sobre a nossa primeira constituição. Perguntaram se podiam se apresentar batucando. Claro que sim. Foi um sucesso. Meu primo as levou de turma em turma, elas sempre abafando, sempre muito aplaudidas.

A partir daí, todos ganharam confiança. Foi uma febre. Um grupo, com muita inteligência, fez uma paródia do rock do Ultraje a Rigor, Inútil. Perfeito para satirizar uma constituição que legitimava a escravidão e só permitia a participação política de proprietários. Houve quem fizesse poemas ou peças de teatro. Tudo era apresentado diante da turma, numa espécie de exame final transformado em programa de calouros. Meu primo resolveu radicalizar fugindo da prisão da nota. Quem fizesse um trabalho correto teria 10. Eles passaram a competir pelo aplauso do público, pela consagração da sua arte diante dos colegas. O professor ficava em segundo plano, como deve ser.

O mais emocionante ocorreu no último dia de aula. Um grupo que já havia feito seu trabalho pediu para apresentar uma peça. Tudo bem. Só que a peça não era sobre a História do Brasil. Era sobre a nossa história, deles e do meu primo idiota. Nela, satirizavam as pretensões e o autoritarismo do professor, bem como a resposta malandra da turma. Depois mostravam como tudo havia se transformado, no momento em que literalmente o professor se dispôs a ouvi-los. Porque ninguém dá voz a ninguém, todos têm voz. É só não abafá-la com aulas expositivas ou qualquer outro tipo de tortura. Foi assim que pouco a pouco, os alunos, de fracasso em fracasso, foram ensinando meu primo a ser professor.

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