Eu e meus primos...

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terça-feira, 24 de junho de 2014

O quadrado mágico

Na Copa de 2006 a imprensa brasileira ganhou um factóide de primeira categoria: o quadrado mágico. Era composto por nada mais nada menos que os dois Ronaldos (o gordo e o gaúcho), Kaká e Adriano. Esqueceram de combinar a mágica com Zidane, que deu um show novamente e eliminou o Brasil com sua bola bem redonda.

O meu quadrado mágico é outro, bem mais modesto, embora de fato capaz de operar maravilhas. A sala de aula, mesmo daquelas caidinhas, com carteiras desconfortáveis e nada além de quadro negro e giz, é um quadrado mágico. Porque dentro tem gente. E gente é capaz de quase tudo. 

O professor é o de menos. O importante é a sala de aula ser como a vida: vibrante, som, luz e movimento, sempre, seguindo o velho malandro carioca, nascido no bairro de Éfeso, o tal de Heráclito. A aula não é o que o professor diz e sim o que os alunos entendem. Fazer um círculo, para que todos possam se olhar, para que não haja centro. Para que todos se sintam responsáveis e importantes. O conhecimento não emana de lugar algum, ele é construído coletivamente. 

Claro que existem alguma jogadas-chave. A aula, como um jogo de futebol, deve ser cheia de embates, de disputas pela bola, ou seja, de questões. Até a fala do professor, e aqui cabe soltar a bola o mais rápido possível, deve ser entremeada de perguntas. Elas permitem aos alunos descansar um pouco e concentrarem a atenção no que é importante. É como ajeitar uma bola para bater uma falta perigosa, com todo o estádio em suspense. A parada proporcionada pela pergunta é estratégica. E as perguntas pontuam o que é mais relevante no texto.

A bola deve circular ao máximo. Os alunos devem ser estimulados a participar de uma maneira ou de outra: respondendo às perguntas, fazendo perguntas, lendo trechos do texto, quanto mais gente tocar na bola melhor. Deve-se a todo custo evitar a aula expositiva, sobretudo para resumir um texto que os alunos já leram. O papel do professor não é mais fornecer a informação e sim ensinar a lidar com ela. Tem que mostrar como se lê um texto: identificando os objetivos do autor, os conceitos teóricos que utiliza e por último as palavras-chave. O debate deve dar-se em torno das palavras-chave. Os alunos podem fazer tabelinhas em duplas ou grupos de três, indo ao quadro para colocar as palavras-chave. Feito um bom camisa 8, cabe ao professor distribuir a bola, organizar o time, pensar as jogadas.

Sempre que possível, é necessário abrir a porta do laboratório e lidar diretamente com as fontes primárias, os materiais a partir dos quais os historiadores constroem suas teorias (claro que não é tão simples assim). Documentos de todo tipo: um discurso de Getúlio no Primeiro de Maio, o texto do AI-5, uma charge do Henfil sobre as Diretas-Já. E muitas, muitas fontes literárias, pois não somente são ricas como documento histórico mas proporcionam um exercício de sensibilidade histórica, treinam a capacidade de interpretação. Às vezes só a literatura dá conta de um tema. Falar sobre tortura é uma abstração, mas ler um relato ficcionalizado de quem foi torturado é uma experiência existencial.

De todas as jogadas de efeito, a música é a mais efetiva, ao menos nas aulas de História. Mas não é uma mera "ilustração". A música é um documento histórico e tudo nela pode ser interpretado, o ritmo, os instrumentos utilizados, a melodia, . E a letra também, é claro. A música, quando se usa a versão original, tem uma capacidade de nos transportar no tempo, de nos colocar diante de outra sensibilidade. Batuque na cozinha cantado malemolentemente por João da Baiana, em um ritmo que expressa a malandragem e seus artifícios, sua lentidão estratégica diante de uma modernidade que era imposta a ferro e fogo. Ou o início de Fim de semana no parque, dos Racionais MCs, recriando o clima de terror vivido nas periferias.

Enfim, assim como o futebol, a sala de aula é uma caixinha de surpresas. Desde que o assim chamado professor esteja disposto a ser surpreendido e a aprender mais do que a ensinar. O papel dele é passar bem a bola.

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