Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Meu primo vira doutor, que horror

"Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... (...) as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou ? Como está, doutor ? Era sobre-humano !..." (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

Não tinha do que reclamar, a vida estava boa. Casado, com um bebê menino que amava mais do que tudo, meu primo estava em festa. Começara a fazer o doutorado em antropologia na USP, com um tema bacana, o corpo feminino em duas sociedades bem diferentes, Atenas e Esparta. O resto ele mesmo contou no capítulo zero de As cores de Acari: a ida à penitenciária a convite do amigo Marcelo Freixo, o abandono da tese em favor de uma pesquisa com os presos, o aluno que o aborda na rua e diz a ele que está louco por jogar a carreira fora, a proibição de entrar na cadeia e finalmente a pesquisa em Acari.

Vou pular a parte de Acari porque a história que quero contar hoje é outra. Mas basta dizer que lá meu primo, que era um bicho de academia, com direito a óculos e pastinha, foi devidamente humanizado. Dona Marlene, cujo nome agora posso dizer com todas as letras, nem deixou meu primo agradecer por toda a hospitalidade com que foi tratado. Olhou para ele meio séria, mas com um certo escárnio bem acariano e disse:

- Nem precisa me dizer o quanto fiz por você, quando você chegou aqui não sabia nem sorrir

Nem sorrir, nem contar piada, nem zoar, nem perceber, como diz Paulinho da Viola, "que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber, que as mãos, não conseguem tocar". Acari ensinou aquele meu primo a ser gente.

A pesquisa foi difícil, ele era novato e não era tão tranquilo assim entender tudo aquilo que estava acontecendo: polícia, bandido, morador, pastores, políticos, repórteres, líderes comunitários e aquele sujeito deslocado, branquelo, com um par de óculos tão gozado que o bom humor acariano logo batizou, em um lance de ironia absoluta, de super-homem.

A coisa mais chocante que lhe aconteceu naquele período não se deu em Acari. Um dia foi à universidade entregar uma documentação. Encontrou duas colegas, ambas especialistas consagradas. Contou a elas, horrorizado, que dois dias antes cinco menores haviam sido mortos com um tiro na cabeça. Colocados em um muro e assassinados. Meu primo assistira à luta de uma senhora para tentar lavar da calçada em frente à sua casa uma enorme poça de sangue. Elas olham o meu primo por dois segundos até que uma delas comenta, em tom casual, que coisas como aquela acontecem muito nesses lugares. Em seguida, passam a combinar a data de defesa de alguém.

Milagrosamente, conseguiu terminar a tese no prazo, o que para ele era uma questão de honra, palavra cujo significado aprendera nas ruas, vielas e becos da favela.

Um dia antes da defesa, já nervoso, vai almoçar com a família na casa da sua mãe e, quase que por reflexo, abre um volume da coleção de Os Pensadores: Santo Agostinho. Uma frase lhe chama muita atenção. O ex-pecador, tornado um dos maiores filósofos da Igreja, humildemente, mas de maneira resoluta, assinala: "sou apenas um fragmentozinho da Criação". Somos muito pouco, mas parte de algo muito maior.

Chega o dia. A USP, até por conta da sua história, segue a tradição francesa, bem mais formal. Lá é o professor que decide as matérias que você vai cursar na pós-graduação, por exemplo. Sem assinatura do orientador, você não se inscreve em nada.

A sala era um auditório grandioso. Três paredes estavam "decoradas", hesito em usar o termo, com fotos emolduradas de todos os reitores que a veneranda instituição já tivera. Havia poltronas confortáveis e um razoável público, uma surpresa para meu primo. Lá estava Deley de Acari, o poeta e líder comunitário que servira de mediador para meu primo entrar na comunidade e lhe ensinara muitas e muitas coisas. Meu primo fornecera-lhe a passagem, dizendo que ele seria o representante de Acari naquele dia, encarregado de contar à rapaziada como fora a tal "defesa".

A banca era composta da orientadora, a maravilhosa Maria Lucia Aparecida Montes e mais quatro professores, um historiador, um antropólogo e duas antropólogas. Cada um tinha vinte minutos para fazer comentários críticos e perguntas ao candidato, que teria o mesmo tempo para responder.

A banca ficava em um estrado bem alto, como se fosse um palco, de frente para o público. O candidato, ficava sentado em uma cadeira na lateral do auditório, de acordo com sua posição liminar, nem doutor, nem platéia.

Depois da exposição inicial, veio a primeira arguição, feita por um historiador merecidamente reconhecido. Ele foi gentil, generoso e educado. Até aqui, tudo bem.

A segunda arguição durou o dobro do tempo previsto e permitido. Foi feita por uma famosa antropóloga, que já havia publicado bastante acerca do tema. Foram 40 minutos de boxe intelectual. Meu primo foi acusado de tudo um pouco. De ter se aproveitado do poeta Deley de Acari sem dar-lhe crédito na tese. De nada valeu o protesto do próprio Deley na platéia. De não citar a referida professora de forma suficiente. De uma série de enganos teóricos imperdoáveis. E, por fim, de ter escrito uma tese que se lia como se fosse um romance policial.

Meu primo, mais do que chateado, ficou triste. De qualquer forma, começou a responder agradecendo, dizendo que era apenas um aprendiz e que realmente tinha muito a aprender. No meio da sua fala, na qual decerto havia também uma ponta de ironia, foi interrompido pela doutora professora:

- Você parece estar querendo mostrar que eu quero reduzir você a nada...
Foi aí que meu primo se lembrou de Santo Agostinho:

- Não, professora, com todo o respeito, nem a senhora nem ninguém, poderiam me reduzir a nada. Pois como diz Santo Agostinho em suas Confissões (faltou citar a página): "sou apenas um fragmentozinho da Criação".

Ela não o interrompeu mais. Ele fechou a sua defesa (agora sem aspas) comentando a observação de que a tese estava escrita como se fosse um romance policial:

- Quanto a isso, obrigado, professora, eu não sabia que a tese estava tão bem escrita assim.

Voltou ao seu porto seguro, a sala de aula, dias depois. Nada falou acerca da defesa. Assim que a aula terminou, perguntou aos alunos:

- Vocês notaram algo de diferente na aula de hoje?

Não?

Pois vocês acabam de ter aula com um doutor

P.S: Há quem fique curioso em saber o nome da professora doutora, mas isso é irrelevante: ela também representa apenas o fragmento de uma coisa bem maior chamada Academia.

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