Eu e meus primos...

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sexta-feira, 4 de abril de 2014

Viktoria

Viktoria

Sim, era verdade. Aquela nuvem de garotos falando Brasil sem parar com sotaque alemão estava atrás da gente. Ou seja, dos jogadores do Pindorama FC, a primeira seleção nacional de escritores do Brasil. Eu nunca havia assinado uma camisa de criança na vida. Muito menos uma chuteira ou um caderno com a programação literária do encontro entre escritores brasileiros e alemães na Feira de Frankfurt. Na capa, um jogador com a camisa nove da seleção canarinho parece comemorar. Eu me vi cercado por eles e assinei como se eu fosse o Neymar. Aliás, muitos deles falavam Neymar, Neymar como sinônimo do amor pelo futebol brasileiro. Também pediam sem parar que depois do jogo déssemos a camisa, a chuteira ou o calção. Algo nosso. Meus companheiros também foram cercados e alguns tiveram até dificuldade para conseguir adentrar o vestiário. Quando entraram, os guris vieram junto, incansáveis.
Estávamos em Sossenheim, um bairro proletário de Frankfurt, definido por um sociólogo alemão como o último reduto da ArbeitKlasse, ou seja, da classe operária. Havia meninos louros, mas também negros e outros que pareciam árabes. Todos estavam a mil por hora. Mesmo na hora do aquecimento alguns deles invadiram o campo e quando um chute mais forte lançou a bola para fora a chusma de calças curtas partiu em massa para ter a honra de devolver a pelota. O campo, impecável como o campo de treinamento do dia anterior, era de grama artificial e dimensões oficiais, para um onze contra onze, quarenta e cinco minutos cada tempo.
Na verdade, o jogo fazia parte de um encontro mais amplo entre escritores alemães e brasileiros durante a Buchmesse (Feira de Frankfurt), a feira literária mais importante do mundo. Ela existe há mais de 500 anos. Aproveitando o fato do Brasil ser o país homenageado de 2013, o Instituto Goethe teve a ideia de realizar este jogo. As primeiras seleções de escritores surgiram na Itália e na Hungria em 2005, e também na Suécia, que durante algum tempo reinou absoluta. Dois anos depois, em 2007, surgiu o Autonama, a seleção alemã de escritores. Atualmente, são campeões europeus.
O Pindorama foi montado às pressas, com uma espécie de Rio-São Paulo mais um escritor do Paraná. Fizemos dois treinos leves em São Paulo, em campos menores, para cinco ou seis na linha. Deu para cada um saber o nome do outro e improvisar uma escalação. Entre nós, havia escritores de ficção dos mais diversos gêneros, do romance à literatura fantástica passando pela literatura infantil, professores de literatura, jornalistas que escrevem sobre futebol, um livreiro e até mesmo um antropólogo historiador que só é bom mesmo no futebol de mesa. O grupo se deu bem, pelo menos fora de campo. Nossos encontros foram alegres e bem humorados, um bando de homens, alguns já com motor 5.0, transformados em meninos novamente. Bethe e Stefanie foram nossas cartolas, duas maravilhosas profissionais do Instituto Goethe da capital paulista. Às vezes pareciam até mais animadas com a empreitada do que a gente.
Embarcamos em São Paulo para um vôo de quase doze horas até Frankfurt am Main. Ou seja, Frankfurt sobre o rio Main. A cidade é sobretudo o centro financeiro do país mais poderoso da Europa. Lá foi criada a primeira bolsa de valores do mundo, ainda no século XVI. Também é chamada de Mainhattan por conta dos lindos arranha-céus que marcam o centro da cidade. Além da Buchmesse, é lá também que fica a sede da Deutsche Fussball xxxx, a Federação Alemã de Futebol. Praticamente ao lado, ficamos nós no Lindner, um hotel temático, obviamente dedicado aos esportes. A impressão que eu tive é que estávamos praticamente dentro de uma floresta, embora a estação de trem mais próxima ficasse a cinco minutos a pé. Fomos distribuídos dois a dois pelos quartos, exatamente como uma delegação de futebol. Piadinhas mil, é claro. Um bando de garotos.
No primeiro dia estavamos zonzos de jetlag e falta de sono pois praticamente ninguém conseguiu dormir no vôo. Mesmo assim, ficamos felizes em ir para o primeiro treinamento, junto com a seleção alemã. Junto é maneira de dizer, pois o campo foi dividido em duas partes e cada time fez o que quis. Os alemães deram uma aula de sentido coletivo: todos correram, alongaram e se movimentaram juntos. Enquanto isso, o escrete verde amarelo se dividia, uns corriam com a bola, outros sem, outros ainda preferiam não correr e tocavam bola entre eles. Fizemos um treino animado, um rachão e as vozes discordantes que falavam em treinamento tático ou jogadas ensaiadas foram ignoradas. O peladão terminou 6 a 3 e até eu fiz gol. Mau sinal, pensei.
O bacana é que o campo de treinamento pertence ao Eintracht Frankfurt, a principal equipe da cidade e que joga na Bundesliga, na primeira divisão profissional da Alemanha. As cores rubro-negras de todo o CT fizeram eu me sentir em casa. Não tão bacana foi o fato de percebermos que o time alemão era pelo menos dez anos mais jovem do que o nosso em média. E o mais chocante e assustador: ninguém ostentava nem uma barriguinha. É também um milagre, porque naquela noite eles nos levaram para um restaurante de comida típica da região. E o cardápio era bem, mas bem pesado: já viram carne de porco à milanesa com batatas O tamanho do copo de cerveja tornava inexplicável a inexistência de pançudos entre eles.
Fomos dormir, finalmente, sonhando com a vitória. Todos acreditávamos no toque de bola, na malícia, na ginga do futebol brasileiro. Reconhecíamos que o time alemão seria uma parada dura e que nós eramos a zebra. Mesmo assim, logo havia quem falasse na caixinha de surpresas ou em uma intuição muito forte. Pois bem. Depois de comer duas linguiças e muitas outras delícias no café. Chamei meu companheiro de quarto e partimos para o centro de trem. Coisa de dez minutos.
Passeamos muito, mas o que mais nos surpreendeu foi uma feira livre, daquelas que existem no Brasil, quer dizer, mais ou menos. Essa era silenciosa e impecavelmente limpa. Só vimos uma barraca de legumes, o resto era comida “leve”: carnes, linguiças, queijos... Como havíamos acabado de tomar café, conseguimos resistir, mas foi difícil. Andamos bastante pela ampla rua principal, muito animada. Acabei por descobrir uma maravilha gastronômica inesperada, uma espécie de palmier semi-coberto com chocolate. Eu sempre adorei palmier mas confesso que nunca pensei que ele pudesse ser melhorado. Vivendo e aprendendo. Com aquela delícia no bolso, fomos procurar um café. Achamos um bem legal, numa rua transversal, mais calma. Já íamos sentando nas lindas cadeiras de palhinha pintadas de preto quando a moça do café nos trouxe almofadas para sentarmos. A gentileza não parou aí: nos deu também um cobertor para cada um colocar sobre as pernas. Estava frio, menos de dez graus, mas soube que para os alemães isto não é frio. A fraulein, além de gentil, era absolutamente encantadora. Meu amigo, ainda mais entusiasmado do que eu, perguntou seu nome. Com um sorriso meio envergonhado, ela disse em voz baixa: Viktoria.
Foi o que bastou. Meu amigo e eu passamos logo a interpretar aquela breve resposta como um sinal dos deuses, uma predestinação histórica encarnada em uma linda mulher. A vitória, ou melhor, a Viktoria, havia sorrido para nós. Saímos de lá eufóricos, pensando em retornar no dia seguinte com a coroa de louros e as boas novas para nossa musa-profetisa. Quem iria pedi-la em casamento ainda não estava combinado. Isso era coisa a debater depois. Agora tínhamos que voltar ao hotel de onde partiria o nosso ônibus. Compartilhamos o veículo com a seleção alemã. O capitão deles, um baixinho com cabelos louros e encaracolados, parecia demais com o Valderrama. Mas ao contrário do jogador colombiano era um sujeito muito simpático, sempre sorridente e gentil conosco.
No ônibus, achei por bem contar toda a história aos craques do Pindorama. Todos adoraram, embora nosso lateral-esquerdo Antonio Prata tenha sussurrado uma coisa ao meu ouvido. O que foi contarei depois. Depois foi aquele carnaval. Teve musiquinha falando que a gente ia botar pra quebrar, muita piada, enfim, alegria geral. Pegamos um pouquinho de engarrafamento, mas não demoramos mais do que meia hora para chegar ao Sossenheim. Foi aí que a garotada nos cercou como se fóssemos a seleção brasileira.
No vestiário cada um de nós recebeu a amarelinha. Uns, como eu, não acreditavam. Outros viravam crianças grandes, grisalhas e meio barrigudinhas. Entramos em campo de mãos dadas com o time de crianças da localidade, absolutamente emocionados (nós, as crianças não). Eu juro que ouvi o locutor dizer em alemão: Drei (3), Marcos Alvito. Juro também que houve até um início de vaia. Para o time alemão, vejam só. As duas equipes se postaram lado a lado para ouvir os hinos nacionais. Pelo menos fomos a única seleção brasileira que cantou o hino nacional de cabo a rabo. Ou melhor, o rabo ficou de fora porque só tocaram metade do nosso hino. Lá fora, muitos garotos ainda gritando, Brasil, Brasil.
Havia três juízes de azul e preto. Eram bem jovens e pareciam ter um metro e noventa cada um. E locutor oficial, como já disse. Em torno do alambrado talvez uma centena de pessoas, incluindo os moleques. O nosso time teve a honra de dar a saída. Foi bom isso, porque talvez tenha sido a única hora em que pudemos tocar a bola com tranquilidade. O time alemão começou o jogo bem fechado, aparentemente nos estudando. Eles marcavam muito e pareciam a Hidra de Lerna, quando um era driblado aparecia logo outro na cobertura. Só há uma palavra para resumir a nossa atuação no primeiro tempo: desastre. Até que o gol deles demorou um pouco a sair, mais ou menos uns dez minutos. Mas depois foi uma enxurrada: cinco a zero somente na primeira etapa. Eles eram sobretudo muito bem entrosados e velozes. Triangulações terminavam em cruzamentos para cabeçadas ou em uma bola recuada para alguém que vinha de trás, já batendo. O locutor, que começara todo respeitoso conosco começou a colocar musiquinha depois de cada gol e a anunciar o placar, Deustchland ein, zwei, drei e terminando com voz irônica, Brasil, zero.
Tudo bem, pelo menos o time alemão foi extremamente correto, não brincou em campo e acho até que nem comemoraram direito. Vai ver que para eles era só um treino. O segundo tempo era uma tragédia anunciada. E ela aconteceu. Eles meteram mais quatro azeitonas no nosso gol. Deixa eu ajudar vocês a fazerem as contas: cinco mais quatro igual a nove. Nove a zero? Não, isso não. Nosso melhor jogador, número 4 Rogério Pereira, cavou um pênalti que o juiz altão teve a bondade (ou a misericórdia) de marcar. Nosso capitão bateu com categoria deslocando o goleiro e fez um gol solitário e mirrado como uma folha de outono caída da árvore.
Lembram-se do sussurro do Antonio Prata, nosso valente lateral-esquerdo? Pois bem, o sábio Pratinha, como gosto de chamá-lo, abriu aquele sorriso de homem bom e me disse:

- Alvito, talvez haja outra interpretação possível para o episódio. Talvez ele queira dizer que a Viktoria é alemã.

P.S: Ainda bem que amanhã o jogo será literário, com autores brasileiros e alemães lendo seus textos sobre a importância da bola em suas vidas. E eu ainda não contei o mais legal. Na saída do primeiro tempo, havia um bolo de garotos, agora gritando Deutschland a plenos pulmões. Exceto um, totalmente cercado por seus amigos, que insistia, Brasil, Brasil... Talvez esse se torne um escritor, pois entre a dura realidade e o sonho ele nem titubeia: é sonho futebol clube.

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