Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Meu primo, que nada sabia, começa a ensinar

Acho que esse primo tinha uns 21 anos. Numa noite de terça-feira foi surpreendido pelo telefonema de um amigo. Era um convite, à queima roupa, para lecionar em uma escola da Baixada Fluminense, mais precisamente em São João de Meriti. O começo era imediato: às 19 horas do dia seguinte, uma quarta-feira. Assim que desligou, meu primo começou a preparar uma aula sobre Pré-História.

A escola ficava em um bairro famoso pelas confecções e lojas de roupas. Saindo deste centrinho, ele seguia por uma rua desolada, sem árvores, sob a trilha sonora dos cultos das igrejas evangélicas.

O estabelecimento era privado e o dono, que se dizia comunista, morava em uma mansão em Niterói, só bebia uísque escocês e pagava menos do que o piso salarial aos seus professores. Os estagiários, como meu primo, recebiam a metade do abaixo do piso, uma fortuna. Todo mês, meu primo recebia seu salário e ia ritualmente à Livraria Leonardo da Vinci comprar um livro. Eu disse um.

Ele sobreviveu ao primeiro dia. Claro que estava muito nervoso. Primeiro começou a desenhar um mapa no quadro para depois perceber que o Mar Vermelho não estava onde deveria estar. Nunca mais tentou desenhar um mapa. Assim que acalmou os nervos viu apavorado o diretor entrar em sala e se aboletar em uma carteira na primeira fila. A pergunta que ele parecia ter estampada no rosto era a mesma que meu primo se fazia: será que esse cara dá pra coisa? O diretor começou a bombardeá-lo com perguntas. Quando foi ver, meu primo já estava soltando o verbo. Era matar ou morrer.

Os alunos eram doces e educados. Muitos deles eram mais velhos, por algum motivo não haviam completado a escola no tempo regular: casamento, filhos, trabalho, falta de gosto e outras coisas que acontecem às pessoas. Até os mais velhos o chamavam de senhor, o que ele fazia questão de retribuir. Foi a crença deles no meu primo que aos poucos o transformou num professor.

Houve pequenos problemas aqui ou ali. Havia um aluno com um nome bem comum que pedia para ser chamado por um nome italiano. Fazia perguntas com muita frequência e diante da calma e da tranquilidade com que meu primo respondia, resolveu radicalizar. Um dia entrou em sala atrasado, brincando com um ioiô bem gigante. A sala fez um silêncio total. Todos os olhos voltados para o jovem professor. Calmamente, sorrindo, meu primo não perdoou:
- Belo ioiô, Luigi. Para brincar com ele é preciso desmunhecar bastante. Cuidado que você pode acabar gostando.

Hoje sei que foi uma piada de mau gosto, no mínimo. Mas foi o que o meu primo conseguiu dizer. A turma veio abaixo, diga-se de passagem. E Luigi nunca mais incomodou.

Meu primo era bem jovem e, apesar de magrelo, narigudo e meio descabelado, fez certo sucesso com a ala feminina. Foi alertado pelo diretor quanto a isso. Logo no primeiro dia foi cercado por umas oito moças que não perderam tempo em lhe perguntar:
- Casado, namorado, solteiro ou tico-tico no fubá?

Como os deuses são bons, meu primo estava namorando, feliz. Mas nem isso desanimou a todas. Foram duas delas que lhe deram as lições mais bonitas daquele ano em que trabalhou ali.

A primeira era uma moça histórico-sociologicamente negra, altura mediana e magra. Assistia à aula sempre na primeira fileira e com um entusiasmo que o meu primo desconfiava não ser originário dos seus parcos dotes pedagógicos. Certo dia, entretanto, quando de uma aula sobre a democracia ateniense, a moça começou a murchar diante dele, caindo numa tristeza de dar gosto. Meu primo só tinha uma qualidade como professor: prestava atenção aos seus alunos. Sendo assim, logo pergunta a ela o porquê de estar assim. Na lata, ela responde:
- Estou triste, professor, porque aprendi hoje que os negros são escravos há 2.500 anos

Horrorizado, meu primo entendeu pela primeira vez que o que o professor diz é uma coisa, o que o aluno entende é outra. Em um país racista como o Brasil, uma jovem negra, que enfrenta cotidianamente o estigma, naturaliza a sua condição, começa a pensar que há algo nos negros que os leva a serem escravos. E era exatamente o contrário, como meu primo logo se apressou a dizer. Os escravos gregos eram quase todos brancos, muitos até louros e de olhos azuis, vindos de regiões do norte da Europa como a Trácia. Para deixar gravado, comparou:
- Eram todos mais parecidos com a Xuxa do que com você

A outra moça também era negra. E também era apaixonada pelo professor. As provas do meu primo exigiam raciocínio, capacidade de análise e de comparação. Alguns alunos tinham muita dificuldade porque estavam acostumados a provas de memorização, a famosa "decoreba". Essa moça se enquadrava nesse caso. Veio várias vezes conversar com o professor para tentar entender o que ele estava solicitando. Era muito educada e respeitosa. Mas através de colegas ela faz chegar a meu primo um LP (procurem no Google) do Djavan de presente.

O maior presente, todavia, é que ao longo do ano ela se transformou na melhor aluna dele, superando frases decoradas e desenvolvendo um raciocínio crítico. Só tirava nota máxima. Nunca abordou o professor, jamais foi inconveniente. Mas no último dia de aula entregou a ele um bilhete, em mãos. Ali o seu amor era declarado da forma mais linda possível. Ela abria mão da possibilidade de ser correspondida, pois sabia que o meu primo tinha namorada. Mas desejava a ele um vida maravilhosa, toda a felicidade no amor, filhos lindos, saúde, paz, tudo de bom. Terminava dizendo que estaria sempre torcendo por ele.

Meu primo tem essa carta até hoje.

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