Eu e meus primos...

Eu e meus primos...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

De como Golbery do Couto e Silva roubou a namorada do meu primo

Para J.

Talvez alguns já conheçam a minha teoria dos primos. Funciona assim: todos nós vamos tendo primos ao longo da vida, à medida que nos modificamos. Uma bióloga me garantiu que de sete em sete anos todas as nossas células são trocadas. Este meu motor 5.3, por exemplo, já teve vários primos.

Primeiro um bebezão louro, quase cinco quilos, que mamava como se o mundo fosse se acabar amanhã. E ia mesmo, porque aos oito meses o pediatra vetou o leite da mamãe. Começava para ele a era da mamadeira. Outro primo foi uma criança feliz em Botafogo, cercada de outras crianças, como era comum antigamente. Depois a coisa começa a complicar. Veio um primo adolescente, tímido, retraído, refugiado no mundo da literatura. Um CDF incorrigível que tinha medo da pista de dança, das festas e principalmente das meninas. Talvez se achasse magro demais ou qualquer outra coisa a mais ou a menos, que a gente inventa quando quer fugir de si e dos outros.

Esse primo adolescente começou a "morrer" quando foi obrigado a servir ao Exército. Aos 18 anos a vida dele já estava toda planejada, iria ser correspondente do Jornal do Brasil em Londres. Só que não. De repente, viu que estar no mundo tinha suas exigências, suas obrigações inescapáveis. No quartel, conheceu gente de todos os bairros do Rio, eram 300 de todo o tipo. Fez dois grandes amigos e, sobretudo, tomou uma decisão inesperada. A inspiração lhe ocorreu quando se viu de botas, uniforme, capacete e fuzil olhando para a rua Figueira de Melo de onde viria um improvável inimigo. Para torturá-lo, do outro lado da rua um casal fazia amor em um terreno baldio. Era um sinal dos deuses. Assim que terminasse o serviço militar, iria pular carnaval, ou seja, iria começar a viver de verdade.

Começou devagarinho, viajando até Teresópolis para o seu primeiro baile de carnaval da idade adulta. Nos anos seguintes iria aumentar e muito a aposta: Salvador e Olinda, esta última com direito a bis. No baile de Terê, descobriu que ainda sabia se divertir. Foi aí que ele a viu e ela o viu também. J. era o nome dela. Era tão alta que isso devia intimidar a maioria dos rapazes, talvez tenha sido esta a sorte do meu primo. Olhos de um céu azul de verão, cabelo louro cacheado, rosto lindo e jeitinho simpático, J. era uma aparição e uma prova de que os deuses são bons. Ela riu muito quando, nos braços do meu primo, ele lhe disse que iria até a casa dela no dia seguinte.

Foi que foi. Sentada na varanda, J. tomou um susto. Amor de carnaval... quem diria. Começaram a namorar, claro. Meu primo, que estudava jornalismo, ia para Teresópolis todos os fins de semana e às 4as. feiras também. Ela era um amor, uma menina de 17 anos que ao fim do ano faria vestibular. Ele estava cada dia mais apaixonado, ela também. Havia algumas dificuldades, é claro. O pai dela era simplesmente o delegado da cidade. Com quase dois metros, corpulento, na juventude fora da Polícia Especial do Getúlio. Quer dizer, o namoro na varanda tinha que ser bastante cauteloso.

Mas tudo ia muito bem. Até que um dia estavam conversando e ele, metido a intelectual de esquerda, menciona o nome de Golbery do Couto e Silva. Se a ditadura militar já teve um cérebro, este foi o Golbery. Teria sido ele o arquiteto do processo de "distensão lenta e gradual" pelo qual o Brasil estava passando à época. Quer dizer, adivinhar o que o Golbery estava pensando era a ocupação preferida de muita gente. Ela, todavia, não tinha a menor ideia de quem era o Golbery. Ele ficou chocado. Como podia, a namorada dele não saber de algo tão importante.

Hoje quando eu lembro disso tenho vontade de dar umas palmadas naquele meu primo e roubar-lhe a namorada. Mas o fato é que ele terminou com ela por causa daquilo. Por causa do Golbery. Claro que não teve a hombridade e a dignidade de explicar. No último dia em que ficaram juntos, houve um festival de beijos e lágrimas. Mas ele continuou irredutível. Uma besta quadrada esse meu primo, fazer o que? Como diz minha mãe: Deus dá nozes a quem não tem dentes...

É possível pedir perdão 35 anos depois? Se for, J. me perdoa, vai?

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